#11 | Milícias
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos.
Meu nome é Eduardo Goulart de Andrade* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, falaremos sobre uma matéria do Intercept que revelou o patrimônio milionário do miliciano Adriano da Nóbrega. Também vamos abordar um levantamento do UOL que mostra que áreas dominadas por milícias no Rio de Janeiro têm menos confrontos com policiais em comparação aos locais controlados por facções de traficantes. Já a Dica da Semana traz a indicação de leitura de um livro.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. Já fizemos o treinamento com jornalistas do Correio, da Bahia, do Globoesporte, do Rio de Janeiro, e com uma turma de alunos e professores de pós-graduação de universidades públicas (UFPR, UFCA e UFC).
O CruzaGrafos é aberto a todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji, pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
Patrãozão
O jornalista Sérgio Ramalho acompanha a expansão de grupos paramilitares no Rio de Janeiro há quase duas décadas. Desde março de 2018, já publicou mais de uma dúzia de matérias sobre milícias no Intercept. E cinco dessas reportagens falam sobre o ex-policial Adriano Magalhães da Nóbrega.
"O ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega já figurava faz tempo como um personagem conhecido nesse submundo, que mescla máfia dos jogos, policiais corruptos e políticos obscuros. 'Patrãozão', 'Gordo' ou simplesmente Adriano recebeu treinamento numa tropa de elite, mas bandeou para a criminalidade, onde chefiou um grupo de matadores conhecido como 'Escritório do Crime'", explica Ramalho.
A fama de Adriano repercutiu nacionalmente depois que seu nome veio à tona durante as investigações dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018. "Um personagem e tanto, que ganhou ainda mais relevância devido às relações com o clã Bolsonaro", diz Ramalho. Em 2005, o miliciano recebeu a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria do estado do Rio de Janeiro, por indicação do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Inclusive, a mãe e a esposa de Adriano foram funcionárias do gabinete do "Zero Um" na Assembleia Legislativa do Rio.
Adriano estava foragido e foi morto em fevereiro do ano passado, durante uma operação policial na Bahia. A reportagem mais recente de Sérgio Ramalho publicada pelo Intercept trata do patrimônio milionário que pertencia ao miliciano.
A matéria aponta que Adriano investia em "propriedades rurais, gado, cavalos de raça, posto de gasolina, restaurantes, revenda de veículos, depósitos de bebidas, academia de ginástica, clínica veterinária, empresa de crédito, casas de material de construção, construtoras de pequeno e médio porte, além de duas empresas voltadas ao aluguel de imóveis próprios". As informações foram obtidas, segundo Ramalho, por meio de pesquisas, entrevistas e análises de processos que tramitam no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
"Parte dos processos estão sob sigilo, sobretudo os apensos onde constam os relatórios de análise das quebras de sigilo de comunicação (telefônico e telemático [dados eletrônicos, como e-mail]) dos investigados. São nesses documentos que constam informações fundamentais ao desenvolvimento da reportagem. Nesse caso, a única forma de ter acesso é por meio de fontes e, posteriormente, um minucioso trabalho de checagem por meio de entrevistas para confirmar a veracidade do conteúdo", detalha Ramalho.
Segundo a reportagem, o soldado da Polícia Militar Rodrigo Bittencourt do Rego é apontado pelo Ministério Público como laranja de Adriano e "um dos principais responsáveis pela administração de negócios legais da organização criminosa".
No CruzaGrafos, vemos que o PM é dono da Cred Tech Negócios Financeiros Ltda. A plataforma da Abraji também revela que ele entrou na sociedade em 18 de setembro de 2017. Para chegar nessa informação, você só precisa clicar na aresta "sócio", que liga o nome de Rego ao ícone da companhia.
#PraCegoVer: print da tela do CruzaGrafos mostra que Rodrigo Rego é sócio de Lara da Silva Camera na empresa Cred Tech
A reportagem do Intercept também traz um organograma do MP sobre os negócios de Adriano.
#PraCegoVer: reprodução do gráfico do Ministério Público apresenta supostas ligações de Adriano com diversas pessoas e empresas
Um dos nomes que aparecem na investigação do MP é o da mãe de Adriano, Raimunda Veras Magalhães. Com o CruzaGrafos é possível ver que ela e o ex-capitão do Bope são sócios de três pizzarias.
#PraCegoVer: CruzaGrafos detalha que Adriano era sócio da pizzaria Tayara, enquanto sua mãe tem sociedade nas pizzarias Rio Cap e Boteco e Brasa. Tatiana Soares Dias é sócia do restaurante de Adriano, assim como também faz parte do quadro societário de uma das empresas de Raimunda Magalhães
O jornalista Sérgio Ramalho também revelou que, segundo o MP, "rachadinha" de Flávio Bolsonaro supostamente financiou prédios ilegais da milícia no Rio. E ainda reportou que o Ministério Público encerrou escutas no caso Adriano da Nóbrega após menções a Jair Bolsonaro. "Essa é a sequência de matérias que fiz a partir dos processos a que tive acesso. Vem mais por aí."
Que tiro foi esse?
Os repórteres Igor Mello e Lola Ferreira analisaram registros de quase 3 mil tiroteios que ocorreram no município do Rio de Janeiro entre julho de 2016 e setembro de 2019. Confrontos envolvendo agentes de segurança pública foram o foco do levantamento. E a partir disso descobriram um padrão. "Na prática, o Rio é uma cidade com duas polícias: uma que promove incessante e violento confronto contra o tráfico de drogas e outra leniente com as milícias", escreveram em reportagem publicada pelo UOL.
De acordo com a matéria, áreas dominadas por milícias tiveram 88 tiroteios envolvendo forças de segurança no período analisado. Por outro lado, os policiais trocaram tiros em territórios controlados por facções de traficantes em 2.333 ocasiões.
"A ideia para mapear os tiroteios surgiu no dia em que a plataforma Fogo Cruzado criou sua API. A partir daí, vi que era um caminho para descobrir como as forças policiais se comportavam em áreas controladas por diferentes facções no Rio, já que as informações do aplicativo são geolocalizadas", explica Mello. "Nós extraímos a íntegra da base de dados deles e filtramos os tiroteios com a presença de agentes de segurança pública."
A plataforma Fogo Cruzado mapeia disparos de arma de fogo na região metropolitana do Rio desde 2016. É uma iniciativa da sociedade civil que conta com dados fornecidos de forma colaborativa por cidadãos. As informações são checadas pela equipe da entidade. E a API foi criada pela agência Volt Data Lab.
"Como a base do Fogo Cruzado é alimentada por várias fontes, a gente também teve de conferir com os informes da Polícia Militar e notas da imprensa a localização exata de cada um dos quase 3 mil tiroteios", explica Ferreira. "O segundo passo foi entender qual grupo criminoso dominava aquela rua/localidade naquela data, porque uma outra característica da Segurança do Rio é que os domínios podem mudar muito rápido. Daí usamos as mídias de favelas, os relatos de moradores e muita pesquisa."
A matéria é ilustrada com um gráfico interativo. "Passei dois meses pesquisando alternativas até encontrar o MapHub, que foi a ferramenta utilizada", indica Mello.
#PraCegoVer: captura de tela da reportagem do UOL traz um mapa do Rio com diversos pontinhos coloridos que indicam se o local é dominado por milícia ou facções de traficantes – como CV, TCP ou ADA. Também há áreas em disputa ou sem domínio de grupos criminosos
Mello é nascido e criado em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, uma área controlada por milícias. Por isso, o tema sempre despertou inquietação no repórter. Ele conta que já havia tentando obter dados sobre confrontos da polícia por meio da Lei de Acesso à Informação, "para mensurar de alguma forma a atuação das corporações em áreas de cada facção, mas não obtive acesso aos dados necessários".
Dica da Semana
No livro “A República das Milícias – dos esquadrões da morte à era Bolsonaro”, o jornalista e escritor Bruno Paes Manso joga luz sobre a história dos paramilitares no Rio de Janeiro e suas relações com a política. A obra foi escrita a partir de um trabalho de reportagem de altíssimo nível. Leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema.
O autor tem vasta experiência na cobertura de segurança pública. Além de ter sido repórter do Estadão e um dos fundadores do site Ponte Jornalismo, ele é pesquisador do Núcleo de Estudos e Violência da USP.
Paes Manso também escreveu o livro “A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, juntamente com Camila Nunes Dias.
E você já pensou em investigar a atuação de milícias? Sérgio Ramalho, Lola Ferreira e Igor Mello dão dicas para quem quer dar os primeiros passos nesse tipo de cobertura:
Em primeiro lugar é preciso ter muita cautela, já que as milícias são compostas por policiais, ex-policiais e agentes do estado que atuam como máfia, alerta Ramalho;
É essencial encontrar fontes que pesquisem, estudem ou investiguem a milícia no cotidiano, para que você consiga ter uma investigação mais robusta. E o principal talvez seja contextualizar o tema na realidade de quem é mais atingido: os moradores de áreas dominadas, aconselha Ferreira;
Com atenção e dedicação, é possível identificar padrões que geram reportagens importantes. Seja em relação à atuação das forças policiais, seja nos índices criminais da cidade, indica Mello.
*Eduardo Goulart de Andrade trabalha profissionalmente com jornalismo há 14 anos. Foi repórter e produtor da TV Brasil e já publicou em diversos veículos, como The Intercept Brasil e InfoAmazonia. Desde 2018, tem focado suas reportagens na interseção entre jornalismo investigativo, jornalismo de dados e técnicas de OSINT.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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