#12 | Fraudes na Educação e na Saúde
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos.
Meu nome é Eduardo Goulart de Andrade* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, falaremos sobre investigações relacionadas ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Também vamos abordar reportagens que revelaram escândalos envolvendo a compra de respiradores durante a pandemia. Já a Dica da Semana detalha como o Sistema Eletrônico de Informações (SEI) aliado à Lei de Acesso à Informação (LAI) pode ser uma estratégia interessante para as suas apurações.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. Já fizemos o treinamento com jornalistas do Correio, da Bahia, do Globoesporte, do Rio de Janeiro, e com uma turma de alunos e professores de pós-graduação de universidades públicas (UFPR, UFCA e UFC).
O CruzaGrafos é aberto a todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji, pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
A farra continua...
O nome do jornalista Paulo Saldaña, repórter de educação da Folha de S.Paulo em Brasília, está marcado na história do jornalismo brasileiro. Juntamente com os parceiros José Roberto de Toledo e Rodrigo Burgarelli, ele venceu a mais tradicional premiação nacional da imprensa, o Prêmio Esso, em 2015. Foi a última edição do concurso – que naquele ano se chamou Prêmio ExxonMobil –, depois de seis décadas ininterruptas premiando os melhores trabalhos jornalísticos do país.
Saldaña foi laureado pela série de reportagens "Farra do Fies", que investigou os gastos do governo federal com o Financiamento Estudantil (Fies). Os jornalistas mostraram que, entre 2010 e 2014, o custo do programa cresceu 13 vezes. Por outro lado, o aumento do número de matrículas no ensino superior não acompanhou a evolução dos investimentos.
“É a primeira vez que o jornalismo de dados ganha o prêmio mais importante do jornalismo brasileiro. A equipe do Estadão Dados, especialmente Rodrigo Burgarelli, precisou escrever em código antes de escrever uma palavra em português. Entrevistamos milhões de registros do Orçamento Geral da União e do Censo da Educação Superior. Aos dados se juntaram as histórias de alunos e escolas, tão bem apuradas e contadas por Paulo Saldaña. Sem a junção da técnica com o conhecimento, sem combinar a análise estatística com a experiência profunda em educação, a farra do Fies existiria, mas sua história não”, disse Toledo ao Estadão à época .
De lá para cá, Saldaña já fez diversas reportagens sobre o Fies. Em 2017, ele alertou que a inadimplência no programa havia aumentado. Dois anos depois, mostrou que o governo não estava utilizando recursos de um fundo criado para cobrir calotes do programa. No ano passado, reportou que o número de novos contratos firmados pelo Fies foi o menor desde 2009. E agora, em abril, escreveu uma matéria sobre um esquema de fraudes no Fies.
Segundo esta reportagem, funcionários do Fundo Nacional da Educação (FNDE) descobriram, em novembro passado, que um servidor mudava os cadastros do Fies para liberar pagamentos irregulares a instituições de ensino. Apesar disso, o governo não alterou o sistema vulnerável e ainda manteve os pagamentos a entidades suspeitas de fraudes.
"Das 22 mantenedoras identificadas na fraude em novembro, dez receberam recursos no mês seguinte, da ordem de R$ 5,3 milhões, segundo os dados mais recentes do FNDE", escreveu Saldaña na matéria. "Seis das 22 mantenedoras pertencem ao mesmo grupo, de propriedade do empresário Wellington Guimarães, do grupo Brasília Educacional."
No CruzaGrafos, vemos que Guimarães é sócio de 18 empresas. A maioria delas é da área de educação, mas o empresário atua também nos setores de automóveis e logística.
#PraCegoVer: print da tela do CruzaGrafos mostra as empresas de Wellington Guimarães
Saldaña explica que a apuração da reportagem se valeu de fontes de Brasília, que falaram sob a condição de anonimato, e também utilizou informações oficiais públicas. "Foi com base nesse cruzamento é que consegui descobrir que empresas suspeitas continuaram a receber recursos do Fies. Além das fontes de dentro do governo, também ouvi especialistas do setor de ensino superior privado e advogados, para entender a situação e situar os personagens, consultei processos judiciais e também procurei todos os citados."
De acordo com o repórter, os dados oficiais foram consultados no balanço do FNDE de recompra de títulos do Tesouro e no cadastro e-MEC. "Neste último cadastro, há informações das mantenedoras, das faculdades e dos responsáveis legais. O acesso a esse cadastro tem de ser feito um de cada vez, o que dá um trabalho extra. Curioso é que, para dificultar a pesquisa, o MEC inclui um captcha nesse site logo após publicação de uma série de reportagens da qual participei, lá em 2015, intitulada 'Farra do Fies'. Também naquela série, o e-MEC foi essencial."
Saldaña também é diretor da Jeduca, a Associação de Jornalistas de Educação. No site da entidade há diversos materiais que podem te ajudar nesse tipo de cobertura. O repórter dá uma dica para quem quer investigar a área. "Acredito que entender as regras gerais dos programas e das políticas seja o primeiro passo para avançar numa investigação. Ouvir o máximo de pessoas envolvidas no tema sempre ajuda nisso."
Respiradores superfaturados
O repórter Ruben Berta foi um dos primeiros jornalistas do país a denunciar fraudes em compras de respiradores durante a pandemia do novo coronavírus. Num furo publicado em seu blog em 6 de abril do ano passado, o jornalista revelou que o governo estadual do Rio de Janeiro pagou o dobro do preço por ventiladores pulmonares. E o pior: a empresa que vendeu os equipamentos é da área de informática, sem relação com o setor hospitalar.
A partir daí, outros veículos começaram a cobrir o caso – que se desenrolou em uma tremenda crise. Figurões do governo foram presos e o governador Wilson Witzel, afastado.
Um ano depois da publicação da matéria, Berta volta ao tema dos respiradores. O jornalista mostrou que o governo estadual queria adquirir mais de 700 ventiladores pulmonares sem licitação, numa compra para lá de suspeita.
Berta foi repórter do jornal O Globo por 17 anos. Depois, passou pelo site The Intercept Brasil. E há dois anos mantém seu blog, com foco em reportagens investigativas sobre o poder público do Rio, num trabalho que ele define como "jornalismo artesanal".
Para fazer as reportagens sobre os respiradores, o jornalista conta que utilizou o Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Rio. Esse tipo de site, utilizado por diferentes órgãos da administração pública do país, concentra uma infinidade de documentos produzidos e custodiados pelo poder público.
"Já incluí na minha rotina [pesquisar] determinadas palavras-chaves que volta e meia coloco ali no SEI, e vejo se existe algo novo envolvendo essas palavras-chaves. Claro que em alguns casos é uma fonte que faz este alerta para mim", explica Berta. No campo "pesquisa livre" do SEI, o jornalista conta que utiliza diferentes termos. Entre eles, "ventiladores pulmonares".
#PraCegoVer: captura de tela da página do SEI do Rio de Janeiro, com a palavra-chave "ventiladores pulmonares", traz mais de 1.200 processos relacionados à pesquisa
Na matéria sobre os respiradores publicada no ano passado, Berta garimpou informações obtidas neste processo SEI. Na reportagem deste mês, a mina de ouro estava aqui. "Envolve uma apuração adicional, é claro, com outros tipos de fontes. Mas ela começa no Sistema Eletrônico de Informações, que permite ver todos os elementos daquele processo: as propostas, quais são as empresas, os documentos das empresas. Isso facilita muito na hora de fazer uma apuração."
Dica da Semana
O SEI fluminense é um exemplo de como a transparência pública é uma arma poderosa para investigações jornalísticas. Os documentos do site ficam abertos para consulta. Mas nem sempre é assim. No caso do governo federal, é comum encontrar páginas SEI onde é possível fazer a pesquisa, mas sem acesso aos arquivos que constam nos processos.
Você encontra quem aderiu à implantação do SEI nesta página. Na esfera federal são 277 órgãos que possuem o sistema, mas com diferentes graus de acesso e qualidade. O Ministério do Meio Ambiente é um deles.
Para esses casos em que os processos não estão disponíveis para consulta pública, uma estratégia interessante é usar a LAI. Solicite acesso à íntegra dos documentos que compõem determinado processo SEI. Aqui um exemplo de um pedido que fiz ao Ministério do Meio Ambiente no ano passado, que pode te servir de inspiração:
Prezados, com base na Lei de Acesso à Informação, solicito os seguintes documentos relacionados ao contrato 7/2019 e demais informações decorrentes do contrato firmado entre o Ministério do Meio Ambiente com a empresa GAP SERVICOS DE EVENTOS EIRELI, CNPJ 10.935.819/0001-02, do início da vigência do contrato 7/2019 até a presente data. As informações consistem em: 1. Cópia integral do Processo 02000.001658/2020-16; 2. Cópia integral do contrato 7/2019; 3. Valor total efetivamente pago pelo contrato, especificando o valor mensal e anual; 4. Planilha com os custos unitários que possibilitem o detalhamento de todos os preços desde a contratação e suas atualizações; 5. Cópia de todas as notas fiscais emitidas pela empresa e os comprovantes que atestem a prestação dos serviços nas condições firmadas pelo contrato. Grato.
E aqui os documentos que recebi.
*Eduardo Goulart de Andrade trabalha profissionalmente com jornalismo há 14 anos. Foi repórter da TV Brasil e já publicou em diversos veículos, como The Intercept Brasil e InfoAmazonia. Desde 2018, tem focado suas reportagens na interseção entre jornalismo investigativo, jornalismo de dados e técnicas de OSINT.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
Para ler as edições passadas da Investigadora, clique aqui. Por hoje, é só. Até semana que vem!
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