#13 | O caso Samuel Klein e os tiros que vêm do alto
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos.
Meu nome é Eduardo Goulart de Andrade* e esta é mais uma edição da Investigadora. Antes de mais nada, gostaria de agradecer a você pela marca que alcançamos. Na semana passada, ultrapassamos a fronteira dos 1.000 assinantes! E, hoje, já são 1.034 pessoas que assinam esta newsletter.
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Nesta edição, falaremos sobre a reportagem que revelou um suposto caso de crimes sexuais envolvendo o fundador das Casas Bahia, Samuel Klein. Também vamos abordar uma investigação sobre como a polícia do Rio de Janeiro utilizou helicópteros, em dezenas de operações, como plataforma de tiro. Já a Dica da Semana traz exemplos de bases de dados que podem te ajudar a investigar aeronaves.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. Já fizemos o treinamento com jornalistas do Correio, da Bahia, do Globoesporte, do Rio de Janeiro, e com uma turma de alunos e professores de pós-graduação de universidades públicas (UFPR, UFCA e UFC). Em breve, será a vez de estudantes da UFF e da UFPA.
O CruzaGrafos é aberto a todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji, pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
Crimes sexuais e o silêncio que durou décadas
A Agência Pública revelou, há duas semanas, uma série de acusações de abusos sexuais envolvendo o empresário e fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, morto em 2014. Durante décadas, ele teria aliciado crianças e adolescentes para exploração sexual. A matéria é assinada por Ciro Barros, Clarissa Levy, Mariama Correia, Rute Pina, Thiago Domenici e Andrea Dip.
Em dezembro passado, a Folha de de S.Paulo já havia noticiado que Saul Klein, filho de Samuel, era investigado por estupro e aliciamento sexual de 14 mulheres.
O diretor, editor e repórter da Agência Pública, Thiago Domenici, conta que a pauta surgiu a partir de uma dica de uma fonte que conhecia as acusações contra Saul. "Naquela altura, Saul era ainda candidato a vice-prefeito em São Caetano do Sul. Estávamos na pista dele quando a história veio à tona pela Folha de S.Paulo, depois UOL e finalmente Fantástico, da Globo, no final do ano passado. Sabíamos que existia o risco de furo no caso de Saul, mas estávamos focados em contar uma história profunda da relação de Saul e Samuel Klein. Pai e filho são abusadores? Como agiam?".
Domenici explica que a Pública montou um núcleo de investigação para apurar o caso – que foi mantido em sigilo do resto da redação, para evitar vazamentos. A equipe passou quatro meses investigando os supostos crimes da família Klein. "Nossa preocupação desde o início, pela delicadeza do tema, pelo nome do envolvido — que já é falecido — era cercar a história para evitar contestação ao trabalho."
Eles pesquisaram Diários Oficiais do judiciário para tentar encontrar outras denúncias envolvendo Saul. "Mas os primeiros processos que descobrimos eram contra seu pai, Samuel. As denúncias eram tantas que em poucos dias já tínhamos encontrado mais de dez mulheres que processavam Samuel por danos morais em razão de abusos sexuais sofridos quando ainda eram menores de idade", detalha Domenici. De acordo com o repórter, eles também usaram o JusBrasil para facilitar a pesquisa, além do site da Imprensa Oficial – para publicações anteriores a 2007.
A partir daí, a equipe da Pública conseguiu entrevistar dez mulheres que acusam o patriarca, sendo que três delas falaram on the record. Os relatos das vítimas tinham vários pontos em comum.
"Por exemplo, serem agenciadas por uma mesma mulher, Lúcia Amélia, que era responsável também por dar dinheiro e mercadoria às meninas. Também diversas mulheres contam que o local dos abusos eram as casas de veraneio de Samuel, em Angra dos Reis, Santos, São Vicente, Guarujá. Que iam de helicóptero, partindo da sede da empresa em São Caetano do Sul. E que abusos, segundo esses relatos, ocorriam com frequência na sede da empresa", afirma Domenici.
Atualmente, as Casas Bahia pertencem à Via Varejo, que também controla outras redes varejistas. A companhia foi criada em 2009, depois que o Grupo Pão de Açúcar comprou as Casas Bahia. Em 2019, a família Klein voltou ao comando da companhia.
No CruzaGrafos, é possível ver os sócios da Via Varejo e a relação do grupo com a família Klein.
#PraCegoVer: gráfico da plataforma da Abraji e do Brasil.io mostra os sócios das Casas Bahia e a relação da empresa com a Via Varejo
Além de consultar processos judiciais e fazer uma série de entrevistas, os repórteres da Pública também consultaram informações na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) – já que várias vítimas relataram que eram levadas de helicóptero para casas de veraneio de Samuel Klein. "A Anac tem os registros de compra e venda, basta fazer a solicitação ou pesquisar diretamente no site deles", indica Domenici.
Apesar da notícia bombástica revelada pela Pública, a partir de um trabalho investigativo detalhado, causou estranheza que o caso não tenha ganhado manchetes em veículos tradicionais. O silêncio por parte da imprensa foi criticado pela ombudsman da Folha.
Tá chovendo bala
A pesquisa “Territórios de Exceção: violação de direitos e uso de helicópteros policiais no Rio de Janeiro”, do MediaLab.UFRJ e da Agência Autônoma, é um daqueles trabalhos de tirar o fôlego. Parafraseando um colega, é uma investigação que poderia entrar facilmente na categoria de obra de arte. E, acima de tudo, o projeto mostra como o jornalismo é fundamental para denunciar injustiças.
Entre 2018 e 2019, a equipe apurou que ocorreram 415 operações policiais com uso de helicópteros no Rio de Janeiro. Em pelo menos 60 delas, há indícios de tiros disparados a partir de aeronaves. O Complexo da Maré, que reúne 16 favelas cariocas, foi o local com o maior número desses disparos que vêm do alto.
Seis pessoas assinam a autoria do projeto. Na coordenação, Fernanda Bruno, Paulo Tavares e Adriano Belisário. Este também foi o responsável pela análise e visualização de dados. Ingra Maciel e Debora Pio participaram na assistência de pesquisa. E Marlus Araújo foi o desenvolvedor web.
Segundo a apuração, policiais em helicópteros atiraram próximo a escolas do Complexo da Maré em 20 de junho de 2018. Era de manhã. O estudante Marcus Vinícius da Silva, de uniforme escolar e mochila, se abrigou dos disparos que vinham de aeronaves. Em vão. Ele foi alvejado por um carro blindado da Polícia Civil, que participava da operação, e morreu.
O jornalista Adriano Belisário afirma que a investigação do projeto é baseada num tripé: com uso de dados, inteligência com fontes abertas (OSINT) e arquitetura forense.
"A primeira envolve desde as técnicas de raspagem massiva de conteúdos em redes sociais, obtenção de informações inéditas via Lei de Acesso à Informação, processamento de linguagem natural para análise dos textos, coleção e produção dos dados geoespaciais necessária, estruturação de dados inéditos e resumos estatísticos sobre as operações, entre outras. O uso de OSINT se insere neste contexto das redes sociais e LAI, mas também se expande às técnicas de geolocalização de fotos que utilizamos, por exemplo. Por fim, as metodologias de arquitetura forense se refletem por exemplo no trabalho realizado pela Agência Autônoma de modelagem de cenas em três dimensões, bem como na abordagem de reconstituição da espacialidade nas quais estas violações de direitos ocorrem", detalha Belisário.
#PraCegoVer: imagem que ilustra a pesquisa "Territórios de Exceção" reconstitui um voo de helicóptero sobre uma comunidade carioca. Os pesquisadores utilizaram diferentes imagens e técnicas forenses para demonstrar que a aeronave estava a 35 metros do chão
Todas as bases de dados, códigos de programação e pedidos de LAI realizados no decorrer do projeto estão disponíveis no Github. Se a transparência é uma das marcas desse trabalho, o mesmo não se pode dizer sobre o governo fluminense. Para Belisário, a opacidade dos órgãos governamentais com dados de segurança pública foi um grande desafio para o desenvolvimento da pesquisa. "Por conta disso, foi preciso construirmos manualmente a base de dados sobre operações com helicópteros, que conta com mais de 700 registros."
Belisário destaca que a possibilidade para obter dados e evidências em fontes abertas tem aumentado muito nos últimos tempos. Isso, claro, é um prato cheio para o jornalismo. Por outro lado, mesmo com a faca e o queijo na mão, boa parte dos jornalistas brasileiros desconhecem os métodos para
realizar busca avançada na web, usar geolocalização como evidência e analisar metadados. Práticas comuns no repertório de OSINT.
"O melhor modo de começar [a praticar OSINT] é com alguma investigação real a partir de temas de interesse. Mas, para aprender mais sobre o tema, podem interessar os links abaixo", recomenda Belisário.
O site de investigação digital Bellingcat
Palestra de Eliot Higgins, fundador do site Bellingcat, no Coda.Br do ano passado
O site Forensic Architecture
Boletim de Dados da Escola de Dados, newsletter mensal editada por Belisário sobre dados e OSINT
Programa de membresia da Escola de Dados
Dica da Semana
Para quem ficou interessado em possíveis apurações envolvendo helicópteros e afins, aqui vai um material que pode ser útil.
A Fiquem Sabendo ensinou como investigar compra e venda de aeronaves, além de mostrar onde apurar acidentes aéreos.
Você já viu que Thiago Domenici, da Agência Pública, indicou uma base de dados da Anac. Mas se você estiver pesquisando aeronaves de outros lugares do mundo, vale dar uma olhada nesses artigos (para países de A a C e de D a F).
Este guia do Bellingcat é um ótimo primeiro passo para rastrear voos. E aqui vão dicas para investigar códigos de transponder.
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*Eduardo Goulart de Andrade trabalha profissionalmente com jornalismo há 14 anos. Foi repórter da TV Brasil e já publicou em diversos veículos, como The Intercept Brasil e InfoAmazonia. Desde 2018, tem focado suas reportagens na interseção entre jornalismo investigativo, jornalismo de dados e técnicas de OSINT.
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