#14 | Quem ganha com a ivermectina e quem mais perde (a vida) por causa da pandemia
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos.
Meu nome é Eduardo Goulart de Andrade* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, falaremos sobre a reportagem que revelou que uma das principais fabricantes brasileiras de ivermectina apoia um grupo de médicos que prescrevem medicamentos do chamado "kit Covid". Também vamos abordar uma investigação sobre como as mortes de caixas, frentistas e motoristas de ônibus aumentaram no auge da pandemia. Já a Dica da Semana traz o exemplo de uma base de dados que pode te ajudar a investigar a distribuição e a aplicação de vacinas contra a Covid-19.
A Investigadora é gratuita. Mas, se você gosta dela, contribua financeiramente com o nosso trabalho. No final de cada edição, você encontra um QR Code e uma chave aleatória para pagar via Pix. É fácil, rápido e você pode doar o quanto quiser!
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. Já fizemos o treinamento com jornalistas do Correio, da Bahia, do Globoesporte, do Rio de Janeiro, e com uma turma de alunos e professores de pós-graduação de universidades públicas (UFPR, UFCA e UFC). Em breve, será a vez de estudantes da UFF e da UFPA e da redação do Correio de Carajás, da cidade paraense de Marabá.
O CruzaGrafos é aberto a todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji, pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
Por trás da ivermectina, uma injeção de dinheiro
Um computador na mão e uma pauta na cabeça. Sem ligação com um veículo jornalístico, o jornalista independente Victor Silva publicou por conta própria um possível conflito ético envolvendo uma entidade médica e uma empresa farmacêutica. Ele revelou, no início de abril passado, que a Associação Médicos pela Vida, defensora do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19, tem apoio de um grupo empresarial que fabrica a ivermectina, um dos remédios que compõem o chamado "tratamento precoce".
"A ideia específica de ver quem financiava o Médicos Pela Vida veio com o famoso anúncio publicitário publicado em mais de dez jornais que naturalmente levou à questão de como eles tinham pago aqueles anúncios todos. Como eu vi que ninguém tinha resposta pra isso, decidi investigar", conta Silva.
Em sua investigação, o jornalista fez um levantamento para descobrir quais eram as empresas brasileiras que mais lucraram com a venda de medicamentos como hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina. "Usei os dados de vendas de medicamentos do 'kit Covid' com receita em 2020. Solicitei ao Conselho Federal de Farmácia os dados por e-mail, me identificando como jornalista e eles prontamente atenderam a solicitação."
Além disso, a partir da investigação digital de fontes abertas (também chamada de OSINT), ele começou a buscar por médicos que recomendavam o tratamento precoce. Para isso, pesquisou em eventos on-line sobre o tema.
"Boa parte da organização dos médicos e dos influencers é pública, feita por meio lives no Instagram, no YouTube e no Facebook. Tem muita coisa arquivada da época em que era mais aceitável receitar esses remédios. Nessas lives se fala muita coisa importante e se consegue mapear as redes de influência locais, nacionais e internacionais e o atual 'estado da arte' do tratamento: quais os remédios atualmente defendidos, quais os protocolos, posologia, quais os planos para o futuro. São espaços 'para convertidos' que são fontes valiosas de informação", detalha Silva.
O jornalista teve acesso a uma dessas lives, que ele publicou em seu canal do YouTube sob o título "Carlos Trindade Orientações sobre a Plataforma Reitor Unialfa". Assim, ele descobriu que a Associação Médicos pela Vida oferece uma plataforma on-line chamada de iMed. Nela, os profissionais da saúde podem assinar manifestos da entidade, que são publicados no site da associação, aprender protocolos de "tratamento" e fazer parte dessa rede que prescreve remédios do "kit Covid". E não para por aí. O principal problema é que o site foi desenvolvido pelo Grupo José Alves, dono da farmacêutica Vitamedic.
"Para quem não lembra, a Vitamedic foi a empresa brasileira que lançou uma nota rebatendo a Merck quando esta se manifestou dizendo que a Ivermectina não era eficaz contra a COVID-19. Acontece que a Vitamedic produz e vende ivermectina. Não apenas isso. Mas trata-se do seu produto mais lucrativo em 2020", escreveu Silva em sua reportagem.
No CruzaGrafos, é possível ver os sócios da Vitamedic.
#PraCegoVer: gráfico da plataforma da Abraji e do Brasil.io mostra que sete empresas e o empresário José Alves Filho são sócios da Vitamedic Indústria Farmacêutica Ltda
Também dá para ver que José Alves Filho é dono de mais de 30 empresas.
#PraCegoVer: CruzaGrafo traz dezenas de conexões entre empresas e o empresário José Alves Filho
#PraCegoVer: print do vídeo que explica como funciona a plataforma iMed. Na imagem, vemos o diretor de tecnologia do Grupo José Alves, Carlos Trindade, além de logomarcas do grupo empresarial
A reportagem de Victor Silva repercutiu no Estadão, em matéria assinada pela repórter Fabiana Cambricoli. Se você ficou interessado nesse tipo de investigação, o jornalista dá um conselho. "Minha primeira dica é: ouça as pessoas mais vulneráveis, procure entrevistar quem usa o tratamento e pergunte as referências delas. Elas se envolveram com esses medicamentos por algum motivo, alguém as introduziu nisso, ouviram a notícia de algum lugar. E essas pessoas são as vítimas, mas têm sua própria rede de informação paralela às redes oficiais."
Os mortos da linha de frente
O jornalista Marcelo Soares teve uma bela sacada para apurar mortes durante a pandemia. Ele analisou dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) para ver quais trabalhadores com carteira assinada mais morreram em janeiro e fevereiro de 2021, em comparação com o mesmo período do ano passado. Matéria publicada no El País, assinada por Soares, aponta que óbitos entre caixas, frentistas e motoristas de ônibus tiveram um aumento de 60% nesta segunda onda da Covid-19.
A ideia da pauta surgiu a partir de uma conversa com o irmão, que é contador. "Comentei com ele que vinha observando um aumento de mortes nas faixas de idade da população economicamente ativa, que concentra quem precisou sair à rua para trabalhar. Lamentei, porém, que os microdados do OpenDataSUS fossem muito pouco preenchidos no campo da ocupação do paciente. Apenas 3% dos registros têm esse campo preenchido, e seria muito importante conhecer isso para estimar o impacto da exposição ocupacional à doença", explica o jornalista. "Uso os microdados do Caged para análises há bastante tempo, inclusive fiz alguns cruzamentos para ele [seu irmão] algumas vezes, e ele perguntou se eu já tinha olhado os desligamentos por morte. Nunca tinha olhado. Quando fui olhar, abriu-se o buraco da fechadura para entender a dinâmica da morte nas ocupações. "
#PraCegoVer: reprodução da visualização de dados feita pelo jornalista Marcelo Soares, por meio do site Datawrapper, apresenta as profissões com carteira assinada que mais foram impactadas pela morte de trabalhadores. Caixas, frentistas e motoristas de ônibus foram os principais atingidos
Para analisar um grande volume de dados, Soares normalmente usa o BigQuery, uma plataforma do Google. A ferramenta tem uma linguagem semelhante ao SQL, que serve justamente para trabalhar com planilhas enormes que não abrem no Excel, por exemplo. "Um dos responsáveis pelo BigQuery publicou no ano passado um ótimo livro. Está em inglês, é caro, mas vale." Soares é fundador do estúdio de inteligência de dados Lagom Data, que tem se destacado em análises relacionadas à pandemia.
Ele é um dos pioneiros do jornalismo de dados no Brasil. Em 1998, aos 21 anos, fez sua primeira matéria com análise de dados. A reportagem, publicada na Gazeta, foi sobre uma diminuição da atividade econômica em um bairro de Porto Alegre. O repórter afirma que o interesse por essas técnicas jornalísticas surgiu ainda na faculdade. "Em 1996, encontrei na biblioteca da minha faculdade (UFRGS, em Porto Alegre) um exemplar de 'The New Precision Journalism', do Philip Meyer." O norte-americano é um dos precursores da chamada Reportagem Assistida por Computador (RAC).
Ontem, Marcelo Soares foi vítima de uma campanha de ódio no Twitter instigada pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente. Nossa solidariedade ao jornalista.
Dica da Semana
Tem interesse em investigar como anda a distribuição e a aplicação de vacinas contra a Covid-19 no Brasil? Então, essa base de dados do Ministério da Saúde é parada obrigatória.
O arquivo com os dados completos desse repositório tem mais de 16 GB. Por isso, nem adianta tentar abrir no Excel ou no Google Sheets. Mas não desanime. Você pode usar o BigQuery ou então o SQL.
Não sabe usar este programa? Seus problemas acabaram! O programador Álvaro Justen, o Turicas, que é um dos instrutores do treinamento do CruzaGrafos, fez uma série de vídeos para o Knight Center que explicam como usar o SQL. Você pode ver as aulas aqui, no módulo 5.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Eduardo Goulart de Andrade trabalha profissionalmente com jornalismo há 14 anos. Foi repórter da TV Brasil e já publicou em diversos veículos, como The Intercept Brasil e InfoAmazonia. Desde 2018, tem focado suas reportagens na interseção entre jornalismo investigativo, jornalismo de dados e técnicas de OSINT.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
Para ler as edições passadas da Investigadora, clique aqui. Por hoje, é só. Até semana que vem!
O que você achou desta edição da Investigadora?
>> Divulgue a Investigadora: encaminhe a newsletter para seus amigos e compartilhe os conteúdos nas suas redes sociais.