#2 | Algumas implicações da pandemia na política e na administração pública
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos
Agradecemos a todas as leitoras e leitores da primeira edição! Mais de cem novas pessoas já se inscreveram após a divulgação desse trabalho e se juntaram à lista de associados e usuários da Abraji e do CruzaGrafos. É muito gratificante ver pessoas interessadas em técnicas de jornalismo investigativo e transparência. O projeto CruzaGrafos é um trabalho feito pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Neste segundo número vamos mostrar alguns casos de investigação jornalística que envolvem a triste pandemia do novo coronavírus. São histórias do Amazonas, do Ceará e do Rio de Janeiro, mas que infelizmente se repetem em outros locais. A crise sanitária - devido a sua fatalidade e urgência - também criou implicações na política brasileira e na administração pública e, sem dúvida, são informações de interesse público que vários jornalistas podem abordar.
Lembramos que não há nenhuma avaliação de mérito do conteúdo das bases de dados por parte do CruzaGrafos, da Abraji, do Brasil.IO ou das (dos) profissionais envolvidos neste projeto. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações e o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela é culpada. Todos os dados devem ser checados, inclusive com os políticos e empresas citados. Sempre deve-se ter cuidado com pessoas e empresas homônimas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui, também há um guia por escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma webstorie. Para ver edições passadas da Investigadora clique aqui.
Lembrando que o CruzaGrafos é aberto a todos os associados. Para não associados da Abraji clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link e aqui como apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
Uma investigação de uso político da pandemia
Naturalmente esta newsletter não tem a intenção de esgotar todos os assuntos que envolvem a pandemia do novo coronavírus e muitos outros podem ser explorados em outras edições. Mas, sem dúvida, a intenção é mostrar casos que podem ser didáticos sobre as possibilidades de bases de dados, fontes de informação e tipos de investigação que envolvem a pandemia.
Nas eleições municipais de 2020, por exemplo, uma reportagem de Nayara Felizardo no The Intercept Brasil mostrou um candidato a prefeito em Manaus que teria tentado se beneficiar politicamente do elevado número de casos da covid-19 na capital manauara. O texto chegou a ser impedido de ser publicado por causa de um processo judicial.
Nesta matéria o caso foi sobre o candidato LUIS RICARDO SALDANHA NICOLAU (PSD), que usou em sua propaganda eleitoral imagens dele como administrador do Hospital de Campanha Municipal Gilberto Novaes. E o texto mostrou que sua família é dona da maior rede de hospitais privados do Amazonas, a Samel, que ficou responsável pela administração do Hospital de Campanha.
A Samel (CNPJ 84537141000138) pode ser vista no CruzaGrafos com os sócios LUIS ALBERTO SALDANHA NICOLAU e JONAS ALVES DE LIMA. O primeiro sócio indica ser parente de LUIS RICARDO por causa do sobrenome. E nas doações ao candidato, que podem ser vistas no Divulgacand, LUIS ALBERTO é também o maior doador de campanha como pessoa física.
A investigação de Nayara descobriu que eles são irmãos e que ações judiciais foram movidas pelos adversários de LUIS RICARDO solicitando o não uso do nome Semel ou do hospital de campanha, além de imagens do próprio candidato entre os pacientes. Entre as ações, algumas foram julgadas pela magistrada Margareth Rose Cruz Hoaegen, que o texto mostra ser amiga de Jeanne Nicolau, esposa do seu irmão, LUIS ALBERTO.
"Neste trabalho a minha primeira fonte foi uma pessoa que sabia da amizade da juíza com a esposa do irmão dele, a cunhada do candidato. Essa pessoa tinha acesso às redes sociais de ambas, e enviou os prints que mostram essa ligação entre as duas", comenta Nayara sobre o começo da apuração.
E essas conexões entre famílias e empresas continuou a ser investigada. Ela verificou também as informações de doações de campanha no TSE e checou informações da política de Manaus com fontes locais que confirmaram o grau de parentesco de LUIS RICARDO e LUIS ALBERTO.
“Fiz também a consulta nos processos eleitorais movidos pelos candidatos e coligações. Isso pode ser visto no TSE e TRE-AM. Alguns dos processos não são públicos, mas um advogado que tenha uma chave de OAB consegue acesso. Pedi para um advogado fonte minha me ajudar. São informações públicas, mas algumas vezes precisam de chave de acesso”, completa.
Aqui é importante sublinhar que uma investigação às vezes pode ser fortalecida por imagens e posts em redes sociais (se estiverem fechadas é necessário buscar fontes para ter acesso a elas) e com a leitura dos processos judiciais de um caso, que podem ser apresentados por rivais políticos, empresários ou outro interessado. Essas etapas ajudam a entender melhor um cenário, já que as petições iniciais ou decisões de um processo podem ter muita riqueza de detalhes. O Publique-se, por exemplo, é um banco de dados com mais de 7 mil processos judiciais de interesse público que pode ajudar a pesquisar diversos políticos brasileiros.
O que escondem os detalhes dos contratos
A pandemia infelizmente mata milhares de pessoas por dia, então isso exige medidas urgentes dos governos e da sociedade. Mas é aí que aumentam os casos de Dispensa de Licitação, Inexigibilidade de Licitação e outras modalidades que criam muitas possibilidades de fraudes em preços, quantidades, contratantes e fornecedores.
E há muita informação sobre isso, com qualidade ou descrição que varia entre os governos federal, estaduais e municipais, e isso pode ser acompanhado quase que diariamente no Brasil todo por qualquer pessoa. A CGU (Controladoria-Geral da União), por exemplo, tem um PAINEL DE CONTRATAÇÕES RELACIONADAS À COVID-19 para acompanhar dezenas de milhares de gastos públicos na pandemia no Brasil todo. Você pode, por exemplo, baixar uma planilha do Brasil todo - é o link após essa frase - “Os dados utilizados nessa análise em constante atualização e disponíveis AQUI” (a URL pode variar de dia para dia).
Em Fortaleza, a repórter Júlia Duarte do jornal O Povo mostrou uma investigação da CGU e da Polícia Federal sobre contratos para o Hospital de Campanha montado no Estádio Presidente Vargas. Ela explica que os técnicos da CGU, policiais e jornalistas estão obtendo informações e fazendo cruzamentos a partir do próprio Portal de Transparência de Fortaleza, criado para a covid-19. A partir daí foi constatado que algumas das empresas estavam comercializando insumos hospitalares com valores superfaturados, além de serem descobertas companhias que não vendiam o material para qual haviam sido contratadas.
Outra fonte de informações para as investigações foi o Tribunal de Contas do Ceará, que também detalha informações de despesas no Estado. No link é possível gerar planilhas por cidades cearenses, classificadas por Tipo (Dispensa ou Inexigibilidade), Objeto da contratação (descrição da despesa), Situação (aberta ou finalizada), datas, valor, CNPJ, entre outras informações.
“O Hospital de Campanha aqui em Fortaleza foi desmontado em setembro e a investigação, os mandados, foram colocados na rua em novembro. Foi feita retenção de valores de empresas e indivíduos são investigados. Mas ainda é uma análise em progresso, a ser complementada, de todos os valores das licitações. Então pessoas podem ser denunciadas, novas buscas e apreensões podem ocorrer ou até prisões”, comenta.
Nessa investigação a polícia e a CGU mantém os nomes de empresas, empresários, funcionários públicos suspeitos sob sigilo ainda, mas também é um caso que já tem processos judiciais circulando na Justiça Federal da 5a. região. São processos também sob sigilo, o que demanda também trabalho com fontes para conseguir ler as peças. E com os nomes das empresas, pessoas ou CNPJs, aí podem ser elaboradas uma série de outras pesquisas, como as mostradas nesta newsletter, para procurar indícios de irregularidades que depois devem ser checados.
Outro Estado com muitas informações abertas sobre gastos da covid-19 é o Rio de Janeiro. O Painel de Contratos Emergenciais permite fazer download em planilhas. O produtor Mahomed Saigg e o repórter Victor Ferreira, do Fantástico, analisaram 70 contratos emergenciais do governo do Rio de Janeiro em busca de suspeitas e encontraram diversos casos suspeitos.
Em um dos contratos, por exemplo, o teste rápido de SARS-CoV-2 foi comprado por R$ 180, mas em farmácias custa R$ 90. Além disso, não havia a eficácia do produto comprovada pela vigilância sanitária. Também foram comprados 4 milhões de unidades de soro fisiológico, que daria para ser usado por 60 anos, mas que têm validade até 2022.
“A gente tinha o desafio de não perder o furo para um veículo diário, trabalhando em um programa semanal e em um tema que tem cobertura extensa do jornalismo. Uma das soluções que utilizamos foram os bancos de dados públicos, cheios de riquezas de informações, mas que exatamente por isso levam muito mais tempo de apuração. Então consultamos o SEI, o sistema eletrônico de informações da Fazenda fluminense, que justamente o governo do Rio tirou do ar em meados do ano passado depois das primeiras denúncias. Aí precisamos do apoio de uma fonte que nos ajudou a acessar o SEI no sistema interno do governo”, conta Saigg.
Nas informações coletadas no SEI, os dois jornalistas puderam conhecer vários indícios de problemas nos contratos em problemas nos preços, quantidades, contratantes e fornecedores. Uma das fornecedoras com contratos foi a TOTAL MED COMERCIO E IMPORTACAO DE PRODUTOS MEDICO HOSPITALARES LTDA (13281874000106), que no CruzaGrafos aparece com os sócios MARCELO LEIBEL e RUI ALEXANDRE PADRAO DE OLIVEIRA e demais empresas que são sócios (clique no botão "Expandir nós vizinhos em até 2 graus" para ver todas empresas e sócios). Na Receita e no Google Street View, com a procura do endereço, é possível ver que a TOTAL MED funciona em um prédio comercial em Niterói e tem um capital social de R$ 80 mil.
Muito útil para entender os casos e aprofundar investigações e suspeitas também é ler as denúncias apresentadas pelo Ministério Público. É o caso de uma denúncia do Ministério Público Federal (MPF) apresentada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em setembro de 2020. Ou, ainda, acessar os relatórios do Tribunal Especial Misto que julga o governador afastado Wilson Witzel (PSC), em seu processo de impeachment.
Para uma visão mais ampla dos envolvidos, checamos as redes de EDSON DA SILVA TORRES, empresário que deu depoimentos contando como funcionavam as supostas propinas para Witzel, o ex-secretário de Estado da Saúde Edmar Santos e o presidente do PSC, pastor Everaldo.
Se observarmos as conexões, as sociedades e os nós paralelos das empresas de EDSON, isso mostra que os nós vizinhos têm proximidade com a Igreja Assembleia de Deus, por meio de ADAO DE JESUS RABELO DE ALMEIDA - uma das pessoas que também teria participado da organização criminosa.
Outro caminho é também ver uma suposta rede de empresas e sócios que a organização criminosa teria usado para o pagamento de propina e lavagem, como o que revelou o operador financeiro do esquema VICTOR HUGO AMARAL CAVALCANTE BARROSO, aqui em um link reproduzido no CruzaGrafos (clique no botão "Expandir nós vizinhos em até 2 graus" para ver todas empresas e sócios).
Informações e investigações semelhantes podem ser feitas em outras cidades e Estados nos respectivos portais de transparência e com fontes locais. A Transparência Internacional Brasil e a Open Knowledge Brasil avaliam esses portais e têm os links respectivos de capitais e Estados.
Dica da semana
Como procurar indícios de fraudes em compras públicas? Informações que você sempre pode buscar para construir sua pauta ou melhorar sua apuração (Fonte CGU-SP NAP)
Na fase de seleção/licitação
1 - Na área demandante da obra/serviço
Necessidade da obra/serviço; Critérios técnicos; Requisitos; Existe sigilo?
2 - Na área de compras do órgão público
Modalidade; Qualificação/Habilitação; Prazos; Sigilo (quebra de); Publicidade; Burocracia
3 - Nas empresas que se interessam
Há cartel?; Concorrência simulada; Conflito de Interesses; Documentos falsos; Tabula rasa (ignorar princípios básicos, como a impessoalidade)
Na fase de fornecimento/aceitação
1 - Na área demandante da obra/serviço
Existiu alteração?; Existiu aceite, com quais condições?
2 - Na área de compras do órgão público
Alteração; Termos aditivos; Existiu pagamento, com quais condições?
3 - Nas empresas que se interessaram
Alteração; Qualidade; Quantidade; Prazo
E UM AVISO: a Abraji abriu uma vaga de jornalista de dados no CruzaGrafos! As inscrições vão até o dia 4 de fevereiro. Veja os detalhes aqui.
Valeu!
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