#24 | Imóveis de políticos e o orçamento secreto de Doria
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos.
Meu nome é Eduardo Goulart de Andrade* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, falaremos sobre uma investigação que revelou ligações suspeitas entre o deputado federal Ricardo Barros e uma empresa farmacêutica investigada pela CPI da Pandemia. Também vamos abordar uma série de reportagens que mostrou como o governo Doria também tem um orçamento secreto para chamar de seu. Já a Dica da Semana é sobre armazenamento de provas.
Mas, antes, um recado: a Abraji acaba de disponibilizar mais duas coleções de documentos no Pinpoint esta semana. Você poderá pesquisar de forma simples, em uma grande quantidade de documentos, relatórios de auditoria da Controladoria-Geral da União e também prestação de contas partidárias. Você pode acessar as coleções aqui.
A Investigadora é gratuita. Mas, se você gosta dela, contribua financeiramente com o nosso trabalho. No final de cada edição, você encontra um QR Code e uma chave aleatória para pagar via Pix. É fácil, rápido e você pode doar o quanto quiser!
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil e do Tribunal Superior Eleitoral. Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados.
Já fizemos o treinamento com jornalistas do Correio, da Bahia, do Globoesporte, do Rio de Janeiro, do Correio de Carajás, da cidade paraense de Marabá, do Matinal Jornalismo, da capital gaúcha, e do site Metrópoles, de Brasília. Além disso, também tivemos turmas de alunos e professores de graduação e pós-graduação de diversas universidades públicas (UFPR, UFCA, UFC, UFF, UFPA, UFSM e Unesp). Ainda treinamos um grupo de freelancers do Rio Grande do Sul, além de uma turma que reuniu jornalistas de todo o Brasil. No total já foram 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji, pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
A casa é sua
Um dos personagens centrais da CPI da Pandemia é o deputado federal Ricardo Barros, líder do governo Bolsonaro na Câmara. Ele supostamente estaria envolvido na compra da vacina Covaxin. O contrato do governo federal para comprar o imunizante indiano, intermediado pela Precisa Medicamentos, continha irregularidades. Mas as ligações suspeitas do político do PP do Paraná não param por aí. Na semana retrasada, a repórter Amanda Audi revelou no Intercept que o parlamentar é íntimo do dono da Belcher Farmacêutica, empresa que também está na mira dos senadores.
A investigação da jornalista começou a partir de uma dica que ela recebeu de um morador de Maringá, cidade no interior do Paraná que é reduto eleitoral de Barros. "Uma fonte de Maringá mencionou que era sabido na cidade que Ricardo Barros morava num apartamento que era de um aliado, Chiquinho Ribeiro, pai de um dos donos da Belcher, uma das empresas investigadas na CPI da Covid e que teria sido favorecida por Barros em um contrato com o Ministério da Saúde para compra da vacina chinesa Convidencia", conta Audi.
No CruzaGrafos, vemos quem são os sócios da Belcher.
#PraCegoVer: print do CruzaGrafos mostra que Daniel Moleirinho Feio Ribeiro e Emanuel Ramalho Catori são sócios da Belcher Farmacêutica
Na apuração, a repórter explica que usou dados públicos do TSE, do cartório de imóveis de Maringá e informações reunidas pela CPI da Covid para contar a história. "Então busquei o endereço declarado por Barros ao Tribunal Superior Eleitoral, que já informava a matrícula, e solicitei o registro no Cartório de Imóveis da cidade. O documento confirmou que o apartamento havia sido comprado ainda na década de 90 por Ribeiro. Uma anotação do cartório datada de 2018 mostrava que Barros comprou o apartamento por um 'contrato particular' em 2004. Nestes 14 anos, entre 2004 e 2018, o imóvel estava em nome de Ribeiro, mas era utilizado por Barros."
Audi também usou a coleção de documentos da CPI que a Abraji disponibilizou no Pinpoint, ferramenta do Google. "Quando vocês criaram [a coleção], fiz um monte de buscas e fui separando alguns tópicos de interesse", detalha a jornalista. "Facilitou muito poder fazer buscas nos arquivos de uma vez – do jeito como estava, tinha que baixar um por um [da página do Senado], e era muito trabalhoso."
Na semana retrasada, o coordenador de projetos da Abraji, Reinaldo Chaves, e eu fizemos uma live para explicar como funciona o Pinpoint. Inclusive, mostrei um passo a passo que poderia ter sido usado para levantar as informações que Audi revelou na reportagem do Intercept.
A jornalista afirma que encarou apenas um único percalço para fazer a matéria. "Acredito que a única dificuldade foi fazer a reportagem à distância (se estivesse em Maringá, poderia ir ao local, tentar falar com vizinhos etc). Mas os dados públicos encontrados ou solicitados na internet cumpriram a função."
#PraCegoVer: com o endereço do imóvel em mãos, é possível conferir a fachada do prédio no Google Maps
E para quem quer investigar ligações de políticos com empresários e possíveis conflitos de interesse, a repórter recomenda "conversar com fontes/moradores destes redutos eleitorais, que por vezes já ouviram falar de alguma história envolvendo a pessoa de interesse. Aí basta ir atrás e ver se consegue checar e comprovar se a história é verdadeira. Mesmo se não for, é possível encontrar histórias paralelas a partir da apuração".
Falta transparência, mas sobra 'afago' aos aliados
Em outubro do ano passado, os deputados estaduais de São Paulo aprovaram uma proposta de ajuste fiscal enviada pelo governo paulista. Naquela época, parlamentares relataram aos repórteres Carolina Linhares e José Marques, da Folha de S.Paulo, que o governador João Doria havia prometido a distribuição do que eles chamavam de "emendas extras" a deputados aliados, caso o projeto fosse aprovado. Era uma espécie de "orçamento secreto", assim como ocorreu no âmbito federal com Bolsonaro. Depois de quase um ano de apuração, os jornalistas publicaram uma série de reportagens sobre o tema em agosto passado.
Linhares conta que fez vários pedidos de LAI sobre as tais "emendas extras", mas o governo paulista sempre respondia com dados das emendas impositivas. Então, ela e Marques começaram a fazer uma varredura nas redes sociais de deputados governistas. "Em um desses posts, vi que o deputado se referiu ao pagamento como demanda parlamentar. Foi aí que caiu a nossa ficha", detalha a repórter.
Os jornalistas fizeram um novo pedido de LAI, mas utilizando o termo "demandas parlamentares". O governo paulista deu acesso à informação. Mas não sem antes dificultar e muito a vida da dupla de repórteres. Em vez de uma planilha digital, o que os jornalistas da Folha encontraram foram caixas cheias de documentos. Sim, em papel. "Pareciam ter sido impressos na hora. Suspeitamos, é claro, que aquilo foi feito para dificultar o nosso trabalho. Pedimos em formato digital, e disseram que não tinham. De certa forma, acabou sendo incentivador para que a gente fizesse não apenas uma matéria, mas uma série. Se estavam dificultando tanto o nosso acesso àquele material, é sinal de que ele traria repercussões", avalia Marques.
Linhares explica que eles passaram dois dias fotografando todos os documentos. Foram mais de 5.200 fotos. Depois, tiveram que transformar essas imagens em tabelas digitais. "Levamos umas duas semanas planilhando", diz Linhares. Ela afirma que encontraram várias inconsistências nos documentos do governo. "Apesar da precariedade dos dados, a gente conseguiu fazer uma limpeza muito grande nos erros que a gente encontrou."
#PraCegoVer: print da matéria da Folha com foto que mostra as caixas com os documentos que os jornalistas fotografaram
Com as informações estruturadas, os jornalistas passaram a fazer a análise dos dados em Excel. E notaram que o dinheiro foi repassado não apenas a parlamentares estaduais, mas também a deputados federais. O que está longe de ser algo comum. "Notamos que havia padrões: por exemplo, os deputados federais que conseguiram esses recursos sempre recebiam aproximadamente R$ 5 milhões ou R$ 10 milhões. Aquilo era um sinal de que havia negociação do governo com valores fechados para cada um", revela Marques.
Depois do levantamento e análise dos dados, eles partiram para a segunda fase da investigação: ligar para deputados federais e estaduais para que pudessem confirmar a apuração. A maioria dos parlamentares confirmou, e ainda deu detalhes sobre o esquema.
"Deputados insatisfeitos são sempre boas fontes. Nesse caso, ajudaram mais os que conseguiram formalmente a liberação de emendas. Eles se queixaram de que o dinheiro ainda não havia sido depositado na conta das prefeituras ou entidades que receberiam os valores. Estavam chateados porque viraram alvos de queixas em seus redutos eleitorais, que esperavam receber as emendas", explica Marques.
Fazer reportagens sobre orçamento é lidar com um tema espinhoso. Por isso, Linhares recomenda manter contato com fontes que dominam o assunto, como professores de contabilidade pública da FGV e procuradores do Ministério Público de Contas. E, claro, escavar dados públicos.
"Este é o site [da Casa Civil] que publica a lista de emendas impositivas que os deputados apresentam na LOA (Lei Orçamentária Anual). A LOA dá pra achar no site da Fazenda de SP e da Alesp, mas ali só tem a lista deputado, valor, entidade que recebeu. O site da Casa Civil tem a lista mais status: se a emenda foi paga, liberada, se teve algum problema técnico e não foi paga. Isso é interessante para acompanhar o ritmo de pagamento das emendas impositivas (o governo está pagando rápido ou devagar, está pagando mais para um deputado do que pra outro?)", indica Linhares.
A dica de Marques para quem quer cair de cabeça nesse tipo de investigação: persistência é a palavra-chave. "Se você quer expor algo que, apesar de ser dado público, não está aberto ou não está organizado adequadamente, muitas vezes é porque há uma história na qual vale a pena investir."
Dica da Semana
Armazenar provas é um dos principais fundamentos para quem trabalha com investigação. As informações arquivadas são úteis não apenas para montar o quebra-cabeça de uma apuração, mas também servem para comprovar os fatos narrados em uma reportagem. Inclusive, em eventuais processos judiciais. Ferramentas como Wayback Machine e Hunchly podem nos ajudar nessa etapa do trabalho.
Inclua a url da página que deseja salvar no campo “Save Page Now” do Wayback Machine. No site também é possível pesquisar por conteúdos que já foram armazenados por outras pessoas. Para isso, inclua o endereço da página que deseja pesquisar no fim da seguinte url: https://web.archive.org/web/*/.
Ou seja, se quiser buscar por tuítes arquivados do presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, é só colar esse endereço no seu navegador: https://web.archive.org/web/*/https://twitter.com/jairbolsonaro. O Wayback Machine ainda tem extensões para Chrome e Firefox. Assim, você pode salvar uma página com apenas dois cliques.
O Hunchly é uma das ferramentas preferidas para quem trabalha com Open Source Intelligence (OSINT). Desenvolvido pelo programador Justin Seitz, especialista em investigação e segurança digital, o software captura automaticamente as páginas que acessamos.
Para isso, é preciso fazer o download do programa e baixar a extensão para Chrome. Você pode testar o Hunchly por 30 dias de graça. A licença do software custa US$ 129,99 por ano.
O programa armazena no seu computador urls, textos, imagens e metadados dos sites pelos quais você navega. No ano passado, gravei um vídeo mostrando o funcionamento do Hunchly. Confira aqui.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Eduardo Goulart de Andrade trabalha profissionalmente com jornalismo há 14 anos. Atualmente, é editor do Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), consórcio internacional de jornalismo investigativo. Foi repórter da TV Brasil e já publicou em diversos veículos, como The Intercept Brasil e InfoAmazonia. Desde 2018, tem focado suas reportagens na interseção entre jornalismo investigativo, jornalismo de dados e técnicas de OSINT. Também edita a newsletter Don't LAI to Me, da agência Fiquem Sabendo.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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