#26 | Cobertura de guerra e o mapeamento da fé
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, pessoal! Tudo bem com vocês?
Eu me chamo Schirlei Alves* e a partir de hoje assumo a missão de escrever a Investigadora. Na primeira edição do ano não poderíamos deixar de falar sobre a guerra na Ucrânia, onde muitos jornalistas arriscam a própria vida para reportar como tem se dado a ofensiva russa e quais são os impactos do confronto na vida de quem é atingido por ele. Nós conversamos com o repórter Yan Boechat, experiente jornalista em cobertura de conflitos que está há três semanas na Ucrânia, sobre os bastidores do seu trabalho.
A newsletter de hoje também aborda uma matéria de O Povo, do Ceará, que fez um levantamento inédito sobre os templos religiosos em Fortaleza. O mapeamento da fé traz informações sobre dívidas, revela como universidades e bancos ganham imunidade de impostos como se fossem igrejas e mostra casos de intolerância religiosa.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter quinzenal sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
A Investigadora é gratuita. Mas, se você gosta dela, apoie financeiramente o nosso trabalho. No final de cada edição, você encontra um QR Code e uma chave aleatória para contribuir via Pix. É fácil, rápido e você pode doar o quanto quiser!
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e também veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados.
Já fizemos o treinamento com jornalistas do Correio, da Bahia, do Globoesporte, do Rio de Janeiro, do Correio de Carajás, da cidade paraense de Marabá, do Matinal Jornalismo, de Porto Alegre, e do site Metrópoles, de Brasília. Além disso, também tivemos turmas de alunos e professores de graduação e pós-graduação de diversas universidades públicas (UFPR, UFCA, UFC, UFF, UFPA, UFSM e Unesp). Ainda treinamos um grupo de freelancers do Rio Grande do Sul, além de uma turma que reuniu jornalistas de todo o Brasil. No total já foram 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
Convivendo com o medo
Quando as tropas russas começaram os ataques à Ucrânia, em 24 de fevereiro, o repórter Yan Boechat — que está no país fazendo a cobertura do conflito para O Globo, Band e VOA News — estava em Slavyansk, próximo à fronteira com a república separatista de Donetsk, que havia sido reconhecida independente por Putin dias antes.
Assim que os bombardeios começaram, a tradutora que acompanhava Boechat fugiu e o deixou abandonado à própria sorte, sem carro e colete a prova de bala. A adversidade não fez o repórter, que já cobriu conflitos na Síria, Afeganistão, Iraque, Faixa de Gaza, Nagorno-Karabakh, Etiópia, Congo e na própria Ucrânia, desistir. Boechat conseguiu mais um equipamento de segurança e fez amizade com o motorista ucraniano Ihor Marko que, apesar de não falar inglês, estava disposto a percorrer o país para ajudar no encalço de sua cobertura. A comunicação entre os dois foi salva pelo Google Translator e o velho e bom sinal de internet que ainda se faz presente nas regiões por onde a dupla tem passado.
Assim como no Brasil, o WhatsApp é uma ferramenta bastante usada pelos ucranianos e tem sido o principal meio de comunicação entre Boechat e os demais jornalistas que estão no local. “Uso alguns aplicativos de informação em tempo real, mas aqui muita gente usa o WhatsApp. Entre os jornalistas tem sido assim. A internet está boa aqui, mesmo em Kiev, mas acho que vai ser cortada em algum momento”, disse.
No dia em que conversamos (3 de março), Boechat estava em Lviv, uma das cidades no Oeste da Ucrânia que mais tem recebido refugiados. Ele já havia passado por Kharkiv — segunda maior cidade do país —, e a capital Kiev — para onde retornou dias depois.
Entre os perrengues que já enfrentou ao longo da cobertura, Boechat destaca um ataque aéreo que ocorreu minutos antes de ele passar por uma estrada de Kharkiv. “Ainda estava tudo em chamas na hora em que eu passei”. Em outro momento, um bunker (abrigo subterrâneo) em um posto à beira de estrada o salvou de um dos ataques. “Eu estava no posto perto de Kramatorsk e o local foi atacado com artilharia de 120 e 150 mm. A gente teve que ficar escondido até conseguir abrir uma janela. Os militares evacuaram a gente e conseguimos escapar. Um soldado morreu e outro ficou ferido”, contou.
“Nesse momento, o que você precisa fazer é tentar buscar abrigo porque artilharia é algo muito aleatório. É a velha máxima: se você ouve uma bomba chegando é porque já está explodindo”.
#PraTodosVerem: Vídeo-selfie gravado por Yan Boechat após o disparo de um míssil atingir um prédio residencial em Kiev. Ele mostra a destruição causada pelo ataque no local e conta que, apesar dos estragos, ninguém morreu. O vídeo foi publicado em sua conta no Twitter (@Yanboechat)
Boechat alerta aos jornalistas que pretendem cobrir zonas de conflito que é preciso ter muita cautela, buscar o máximo de informações possíveis sobre o que está acontecendo no local, procurar os colegas jornalistas em campo, manter a comunicação com todas as pessoas envolvidas na cobertura e, principalmente, “respeitar o medo”.
As dívidas ocultas de quem tem fé
“Quais as religiões mais predominantes em cada bairro de Fortaleza?”. A pergunta inocente levou a equipe do Data.doc, o centro de dados do jornal O Povo, no Ceará, coordenado pela jornalista Thays Lavor, a fazer um levantamento inédito sobre irregularidades envolvendo os templos religiosos na capital.
A série Credos da Cidade, publicada entre 28 de janeiro e 21 de fevereiro, conta com cinco episódios que traçam a cartografia da fé em Fortaleza, revela o descontrole da prefeitura sobre o cadastro dos templos, o benefício da isenção de impostos recebido por empresas como se fossem organizações religiosas e a consequente invisibilidade de credos como os de matriz africana. Entre as empresas que ganharam imunidade de impostos estão uma universidade, um banco e uma construtora. Cerca de R$ 1,3 milhão deixaram de ser cobrados de 42 imóveis que constavam no cadastro municipal como religiosos, mas na verdade não eram.
A equipe do Data.doc cruzou bases de dados de Receita Federal, Secretaria Municipal de Finanças, IBGE, Brasil.IO, Secretaria de Segurança Pública, Tribunal de Justiça e do acervo do próprio jornal. Parte das informações foi obtida via Lei de Acesso à Informação (LAI). Dos cartórios locais foram coletadas informações como o número de igrejas registradas por dia.
Para fazer a análise exploratória dos dados e o cruzamento das bases, Thays Lavor conta que a sua equipe usou Python — uma linguagem de programação cujos códigos estão disponíveis na plataforma Github. Já o cruzamento das bases de dados com informações georreferenciadas (latitude e longitude de cada templo) foi feito por meio do Places API — um serviço do Google que permite consultar informações sobre lugares e estabelecimentos disponíveis no banco de dados do Google Maps.
A segunda reportagem da série revela que mais de uma centena de organizações religiosas deve R$ 7,96 milhões à União, isso só das igrejas formalizadas. Na apuração, os jornalistas Cláudio Ribeiro e Thays Lavor fizeram um ranking das cinco maiores devedoras do fisco em Fortaleza, que juntas são responsáveis por 72% da dívida ativa de organizações religiosas com a União. O CruzaGrafos ajudou os repórteres a descobrir que os titulares dessas organizações possuem relações ou são sócios com outras 20 empresas, que vão desde igrejas e escolas a rádios, hospitais e até cemitérios.
#PraTodosVerem: print do CruzaGrafos apresenta as oito empresas que o pastor Cícero Francisco da Costa Neto é sócio, além de outras relações. A Comunidade Cristã Videira, fundada por ele, é uma das cinco maiores devedoras, segundo a reportagem.
Para desenvolver a visualização dos dados e torná-los acessíveis aos leitores, os jornalistas usaram como ferramenta o Flourish e desenvolveram visualizações para web na plataforma Observable.
O projeto levou quatro meses e envolveu seis profissionais entre apuração, produção de texto, classificação das igrejas, desenvolvimento web, edição, análise e visualização dos dados. Para dar conta de tanta informação, Lavor aplicou a metodologia ágil de gerenciamento de projetos. “Dois integrantes da equipe atuaram como classificadores dos templos religiosos, ou seja: após ler a classificação do IBGE e outras definições acadêmicas para religiões, duas planilhas foram entregues (uma para cada um) com os mesmo registros, e cada um iria classificar”, contou.
“Feito isso, uma terceira pessoa revisou e classificou. Para os registros em que havia conflito de entendimento, entramos em contato com os templos para saber como se classificavam. Aqueles com quem não conseguimos falar ou identificar, não classificamos. Essa etapa foi fundamental para mapear os templos”, explicou Lavor.
Dica da Semana
Se você está trabalhando na cobertura da guerra na Ucrânia, seja no local ou à distância, e tem dificuldade de fazer uma curadoria acertada sobre o que está acontecendo em tempo real, não deixe de ver os recursos selecionados pelo Nieman Lab — da Fundação Nieman para Jornalismo na Universidade de Harvard. O material está sendo atualizado constantemente.
Opiniões, desinformação e informações quentes se misturam nas redes sociais e dificultam a busca. Por isso, o Nieman Lab compilou listas do Twitter, catalogou veículos que abriram o paywall e têm sido referência na cobertura, além de projetos, podcasts e boletins informativos.
Uma das ferramentas que achei mais interessante foi o rastreador de sanções lançado pela organização alemã Correctiv. que atualiza diariamente quais embargos são impostos a quem. Até o dia 8 de março, a plataforma havia registrado 1.274 sanções desde o dia 22 de fevereiro.
O coletivo internacional de jornalismo investigativo Bellingcat também está atualizando diariamente uma planilha no Google Sheets com verificação de informações e vídeos que são compartilhados na web e, muitas vezes, são falsamente relacionados ao conflito na Ucrânia.
No Brasil, o Núcleo Jornalismo também criou uma ferramenta com curadoria automática de tweets sobre a guerra na Ucrânia. O projeto tem apoio do ICFJ (International Center for Journalists). Vale a pena conferir!
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o The Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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