#27 | Amazônia: contrabando de madeira e o reduto de gringos sócios de refinarias
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, como vai? Espero que esteja bem!
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. As duas histórias de hoje nos levam até a Amazônia, onde a exploração de minério e madeira valem ouro, cujo brilho é cobiçado por gringos e facções criminosas.
Os repórteres percorreram as pistas desse caminho fraudulento ao longo de um ano. Como resultado das investigações temos uma reportagem que esmiúça o contrabando de madeira exótica para os Estados Unidos e outra que revela os bastidores da instalação de uma refinaria no Pará, que tem como investidor um empresário condenado por lavagem de dinheiro na Bélgica.
Na dica da semana, saiba como identificar as demarcações de terras indígenas por meio de geoprocessamento e mapas disponibilizados pela Funai.
Hoje nós também temos uma novidade que vai contribuir para o seu método de investigação. A partir de abril, associados da Abraji terão acesso à Aleph — uma ferramenta que contém mais de 200 bases de dados que podem ser cruzadas entre si. O acesso é resultado de uma parceria firmada entre a Abraji e a OCCRP (Organized Crime and Corruption Reporting Project) — consórcio internacional de jornalismo investigativo que criou a plataforma. Veja como se cadastrar no Aleph e no formulário de acesso neste texto.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
A Investigadora é gratuita. Mas, se você gosta dela, apoie financeiramente o nosso trabalho. No final de cada edição, você encontra um QR Code e uma chave aleatória para contribuir via Pix. É fácil, rápido e você pode doar o quanto quiser!
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados.
Já fizemos o treinamento com jornalistas do Correio, da Bahia, do Globoesporte, do Rio de Janeiro, do Correio de Carajás, da cidade paraense de Marabá, do Matinal Jornalismo, de Porto Alegre, e do site Metrópoles, de Brasília. Além disso, tivemos turmas de alunos e professores de graduação e pós-graduação de diversas universidades públicas (UFPR, UFCA, UFC, UFF, UFPA, UFSM e Unesp). Ainda treinamos um grupo de freelancers do Rio Grande do Sul, além de uma turma que reuniu jornalistas de todo o Brasil. No total já foram 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
O deck que vale ouro
Uma planilha com dados sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de propriedades do Pará foi o ponto de partida para uma investigação sobre crime ambiental que durou um ano e revelou o caminho do contrabando de um lote de 53 metros cúbicos de ipê amarelo — espécie de luxo, cobiçada no mercado norte-americano e campeã de exportação. O lote de madeira extraído ilegalmente no Brasil ao custo de R$ 21 mil o m³ foi transformado em decking (assoalho de madeira) e posto à venda por um valor 86 vezes maior nos Estados Unidos (R$ 1,8 milhão).
A reportagem "A Conexão", de Allan de Abreu e Luiz Fernando Toledo, publicada em janeiro na Piauí, reconstituiu os 5,6 mil quilômetros que a carga percorreu por terra e mar até chegar a uma loja em Nova York. A publicação revela ainda os interesses da maior facção criminosa do país no transporte ilegal de madeira e o que o ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, tem a ver com isso.
Para refazer a trajetória do lote de ipê contrabandeado, Abreu e Toledo cruzaram a base do CAR com informações sobre áreas protegidas no Pará. Eles também buscaram dados sobre os donos das terras investigadas, possíveis relações com políticos e pessoas que fossem beneficiárias de programas sociais e pudessem estar sendo usadas como laranjas.
#PraTodosVerem: Gif produzido pela equipe de reportagem mostra o avanço do desmatamento na Floresta Nacional do Jamanxim — de onde os ipês foram extraídos. A animação compila imagens de satélite de 1985 a 2020.
Entre as bases consultadas está a Aleph do Projeto de Denúncia de Crime Organizado e Corrupção (OCCRP na sigla em inglês) — que fornece acesso a um vasto arquivo de registros governamentais e bancos de dados que já comentamos no início da newsletter. A plataforma foi usada para pesquisar informações sobre posse de offshores em outros países, além de possíveis sanções e multas.
“O cruzamento de áreas protegidas com o CAR foi o ponto de partida para identificar os ‘grileiros’ que investigaríamos e, mais tarde, identificar a história específica do ipê”, contou Abreu à Investigadora.
Após mapear quem eram os autodeclarados donos de áreas em terras indígenas e unidades de conservação, os repórteres pesquisaram quais deles possuíam madeireiras ativas. O Centro de Análise de Crimes Climáticos (CCCA na sigla em inglês) deu suporte para que Abreu e Toledo pudessem verificar as guias florestais emitidas pelas madeireiras e, assim, detectar quais tipos de madeira elas comercializavam.
“A Canaã do Norte nos chamou a atenção por dois aspectos: primeiro que ela comprou muita madeira da Prefeitura de Itaituba, em um suposto leilão, enquanto a prefeitura nos disse que nunca vendeu madeira alguma; e segundo que a Canaã obteve lucros de mais de 100% na compra e venda da madeira sem nenhuma justificativa”, explicou Abreu.
A dupla escolheu rastrear o ipê dentre outras espécies comercializadas por ser uma árvore símbolo do Brasil e muito valorizada na Europa e nos Estados Unidos. “Como a quantidade de ipê em toda a cadeia comercial, da origem até o destino final, variava muito, optamos por considerar os 53 m³ [lote investigado] porque era a menor quantia de toda a cadeia”.
Alguns personagens curiosos que dão vida à reportagem são os donos das empresas locais que foram responsáveis pelo transporte da carga. Um deles é o jovem João Marcos da Silva Alexandre, que supostamente emprestou seu nome para abertura da serraria JMS em troca do pagamento de um curso superior de engenharia civil. No CruzaGrafos, é possível verificar que a JMS responde a pelo menos três autos de infração no Ibama.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra que a serraria JMS é ré em pelo menos três autos de infração por crimes ambientais.
Outras possibilidades de consulta do CNPJ das empresas são pelo próprio site da Receita Federal, no Cadastro de Empresas Inidôneas e Suspensas da Controladoria-Geral da União, no Brasil IO e no Portal de Nota Fiscal Eletrônica.
Vale lembrar que os repórteres foram a campo conferir a história, o que os ajudou a “identificar os personagens principais”, “fazer fontes” e “sentir a dinâmica do trabalho para explicar detalhes importantes dos envolvidos”.
Capital belga no Pará
Um empresário belga, condenado por lavagem de dinheiro e fraude ao criar um mercado clandestino de ouro em seu país, quase passou despercebido como investidor da nova refinaria que está sendo construída no Pará, a North Star Refinaria, não fosse pelo faro do repórter Hyury Potter. Segundo a apuração, a North será em breve a maior refinaria de ouro do país, com capacidade para produzir até 48 toneladas por ano. O lucro estimado para o primeiro ano de atividade é de R$ 7,2 bilhões.
A reportagem O Caminho do Ouro, publicada no The Intercept Brasil e no The Intercept norte-americano, faz parte do projeto de Hyury Potter no Rainforest Investigations Network (RIN) e teve apoio do Pulitzer Center. A Earthrise Media — instituição sem fins lucrativos dos EUA — colaborou com a análise de imagens de satélite.
Potter investiga pistas de pouso clandestinas que estejam relacionadas à mineração ilegal na Amazônia desde fevereiro de 2021, quando começou o projeto na RIN. Ele estava investigando a mineradora Gana Gold quando deparou com o caso da North Star. Com o apoio da rede de jornalistas da qual faz parte, Potter descobriu que a Gana havia assinado um acordo com outras mineradoras para fornecer ouro à refinaria que estava em construção em Belém.
“Nessa época, aproveitava o tempo que sobrava da apuração sobre a mineradora Gana Gold para buscar documentos e solicitar alguns pedidos via Lei de Acesso à Informação. Como tínhamos tempo, pois sabíamos que ninguém mais estava atrás dessa história, resolvemos ir tocando a investigação aos poucos”, contou à Investigadora. “Esse tempo longo foi importante, pois nos deu tranquilidade para analisar documentos sobre os investidores que encontramos aqui no Brasil e em outros países”.
O repórter já suspeitava que alguém da família belga, de sobrenome Goetz, estivesse investindo na refinaria, pois um projeto semelhante chegou a ser anunciado em 2018 pelo então governador do Pará, Simão Jatene (PSDB, seu partido na época). Os releases de imprensa, segundo Potter, citavam a empresa da família, mas o projeto não andou e só foi retomado anos mais tarde pelo atual governador, Helder Barbalho (MDB). Desta vez, o governo estadual não citou a empresa investidora, apenas anunciou que havia “capital belga”.
Potter, então, recorreu à Junta Comercial do Pará para buscar informação. Ele se cadastrou no site da Jucepa e solicitou documentos da empresa responsável pela refinaria, o que permitiu que acompanhasse as atas de reuniões dos acionistas. Como a Junta cobra pelos documentos, o repórter deu uma dica: “é melhor focar em atas de mudanças de dados, em que é possível encontrar alguma alteração societária, e em balanços patrimoniais”.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra quem são as pessoas que constam como sócias da North Star na Receita Federal e quais as suas relações. A Omex Comércio ligada aos sócios da North e ao ex-prefeito de Itaituba, Roselito Soares da Silva, segundo a apuração, foi uma das investidoras da refinaria.
Colaboradores da RIN também ajudaram Potter a buscar documentos dos investidores na Bélgica. “Assim tivemos acesso a processos judiciais e detalhes sobre a atuação do empresário Sylvain Goetz na Bélgica e em Uganda”.
O principal colaborador da reportagem foi o jornalista Kristof Clérix, da revista belga Knack, que publicou matéria sobre o assunto. Os dois compartilharam informações públicas entre si. Outro jornalista belga que ajudou a encontrar documentos foi Jelter Meers, editor na RIN.
Potter deu mais uma dica de fonte de dados “que vale ouro” para quem está investigando empresas estrangeiras: a Comissão de Valores dos EUA. Foi por meio da ferramenta de busca da comissão que ele descobriu quem são as empresas que já compraram ouro dos Goetz. O metal foi usado em componentes eletrônicos de empresas como a Tesla, Amazon, Dell e Starbucks.
“Todas as empresas listadas na bolsa norte-americana precisam entregar um relatório anual informando os nomes dos fornecedores de minérios. Como já tínhamos o nome da empresa do Sylvain Goetz, fizemos uma busca em quais relatórios citavam essa empresa”, revelou.
Ao longo da apuração, Potter também encontrou uma carta de três senadores norte-americanos endereçada à Secretaria do Tesouro dos EUA cobrando sanções contra a empresa belga. O motivo seria a atuação suspeita da corporação em países africanos.
Dica da Semana
Se você está investigando exploração de terra ou alguma atuação clandestina em área protegida, aproveite as ferramentas de geoprocessamento e mapas fornecidos pela Funai para checar quais são as áreas demarcadas.
A Fundação disponibiliza para download as informações geoespaciais por modalidades de terras indígenas, por unidades da federação, dados geográficos das coordenações regionais e técnicas locais, localização de aldeias e unidades de saúde que atendem as populações indígenas. Você pode importar esses mapas para o Google Earth e visualizar as áreas demarcadas. As coordenadas também estão disponíveis em formato CSV.
Como exemplo, importamos o arquivo de “terras indígenas tradicionalmente ocupadas” e “homologadas” para o Google Earth. As marcações em branco correspondem às terras demarcadas. No mapa, destacamos a região de Novo Progresso (PA), que foi o local investigado pelos repórteres Abreu e Toledo. Verifique que as terras indígenas Baú e Mekragnotire estão próximas do município.
#PraTodosVerem: Print mostra um mapa da região de Novo Progresso, no Pará. Uma reta destacada em amarelo representa a BR-163, principal rodovia da região. À direita, é possível visualizar as terras indígenas Baú e Mekragnotire destacadas na cor branca. Um marcador amarelo indica a localização do município.
Se a página da Funai indicar uma falha de segurança quando você tentar baixar os arquivos, não se assuste! Você pode continuar fazendo o download, pois o aviso está ligado a um erro de atualização do protocolo de segurança do site. Gostou da dica? Escreva pra gente e nos dê sugestões de assuntos que gostaria de ver na nossa newsletter!
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*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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