#28 | Os pastores do MEC e os antivacinas do SUS
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, tudo bem?
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje você vai conhecer os bastidores da reportagem que revelou o gabinete paralelo de pastores no Ministério da Educação (MEC) e que resultou em mais uma dança das cadeiras entre os ministros do governo Bolsonaro. Confira também como o Telegram ajudou dois repórteres a desvendar um esquema de venda de certificados falsos de vacinas a negacionistas.
E se você já está se preparando para a cobertura de eleições, que promete muita turbulência neste ano, se liga na dica da semana. Nós vamos te mostrar como pesquisar quem está investindo em impulsionamento nas redes sociais.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
A Investigadora é gratuita. Mas, se você gosta dela, apoie financeiramente o nosso trabalho. No final de cada edição, você encontra um QR Code e uma chave aleatória para contribuir via Pix. É fácil, rápido e você pode doar o quanto quiser!
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados.
Já fizemos o treinamento com jornalistas do Correio, da Bahia, do Globoesporte, do Rio de Janeiro, do Correio de Carajás, da cidade paraense de Marabá, do Matinal Jornalismo, de Porto Alegre, e do site Metrópoles, de Brasília. Além disso, tivemos turmas de alunos e professores de graduação e pós-graduação de diversas universidades públicas (UFPR, UFCA, UFC, UFF, UFPA, UFSM e Unesp). Ainda treinamos um grupo de freelancers do Rio Grande do Sul, além de uma turma que reuniu jornalistas de todo o Brasil. No total já foram 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
O “governo itinerante” dos pastores evangélicos
“Muitas vezes você ouve histórias em Brasília que nunca vai conseguir provar”, nos disse o repórter Breno Pires, que atua com investigação em política na sucursal brasiliense do jornal O Estado de S.Paulo. Uma das informações mais recentes que recebeu de uma fonte, no entanto, o levou a publicar uma série de denúncias envolvendo o Ministério da Educação (MEC). A pauta mobilizou a imprensa nacional em busca de mais informações e resultou na queda do ministro Milton Ribeiro.
A primeira reportagem, intitulada “Gabinete paralelo de pastores controla agenda e verba do Ministério da Educação”, revelou que os pastores evangélicos Gilmar Santos e Arilton Moura agiram como lobistas ao direcionarem recursos do MEC a prefeituras ligadas aos partidos do núcleo duro do Centrão (Progressistas, PL e Republicanos). A reportagem identificou a presença dos religiosos em 22 agendas oficiais da pasta no período de um ano e meio, sendo que a maior parte dos encontros contou com a presença do então ministro. Os pastores também foram recebidos pelo presidente Jair Bolsonaro.
Breno Pires contou com a parceria dos repórteres Felipe Frazão e Julia Affonso para produzir o material, que foi publicado no dia 18 de março pelo jornal O Estado de S.Paulo, após uma semana intensa de apuração. A descoberta foi consequência da investigação que vinha fazendo desde o ano passado sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) — autarquia vinculada ao MEC que tem recursos do “orçamento secreto” e gera interesse dos aliados do governo.
A informação que chegou ao repórter através de uma fonte veio com o adicional de que os pastores estariam cobrando propina para liberar os recursos do MEC. Só que, para comprovar essa informação, a equipe levaria mais tempo e as evidências levantadas até aquele momento já indicavam a influência exercida pelos pastores dentro da pasta.
A primeira medida tomada pelos repórteres após descobrir os nomes dos pastores foi fazer o download das agendas do gabinete. Pires sugere baixar as planilhas com as agendas completas em formato CSV, pois nem sempre a ferramenta de busca do site traz todas as informações.
Os repórteres dividiram as tarefas para analisar as agendas, examinar postagens nas redes sociais dos pastores e vídeos de eventos publicados por emissoras locais e entender as conexões políticas dos pastores contatando políticos das regiões por onde o “governo itinerante”, nas palavras dos religiosos, passou.
“O enredo da primeira matéria mostra esses dois pastores atuando como lobistas. Encontramos diversos vídeos em que eles estavam com o ministro Milton Ribeiro nos eventos", contou Pires à Investigadora. Segundo o repórter, um dos pastores fala como se fosse um integrante do ministério. "Ficou muito evidente que havia uma espécie de gabinete paralelo no qual estava ocorrendo atendimento a prefeitos ligados ao grupo de pastores”, disse Pires.
#PraTodosVerem: Vídeo publicado pelo Estadão mostra os pastores dando entrevistas e falando em eventos sobre os recursos do MEC.
Quatro dias depois, os repórteres comprovaram o pedido de propina. Em reportagem publicada no dia 22 de março, Breno Pires, André Shalders e Julia Affonso revelaram trecho de uma entrevista em que o prefeito do município de Luís Domingues (MA), Gilberto Braga (PSDB), confirma ter sido abordado pelo gabinete paralelo. No áudio, o prefeito conta que o pastor Arilton Moura requisitou R$ 15 mil antecipados para protocolar demandas da prefeitura, além de um quilo de ouro após a liberação dos recursos.
Pires garantiu a entrevista às 20h, após um dia inteiro de muitas tentativas. A equipe fez um esforço coletivo para virar a manchete e assegurar a publicação no jornal do dia seguinte. “Foi o primeiro prefeito a falar; e outros endossaram o enredo de corrupção, que envolvia também a compra de Bíblias a pedido dos pastores”.
A reportagem que, na avaliação de Pires, foi o estopim para desbancar o ministro foi a que revelou fotografias de Milton Ribeiro e dos pastores estampadas em exemplares de uma edição da Bíblia distribuídos em um evento do MEC no município de Salinópolis (PA). No mesmo dia, em 28 de março, o ministro pediu demissão do cargo. Segundo a apuração, a edição dos exemplares foi feita pela Igreja Ministério Cristo para Todos, que tem uma gráfica em Goiânia.
Em pesquisa ao CruzaGrafos, verificamos que o pastor Gilmar Santos é sócio do Ministério Cristo para Todos e da editora de mesmo nome. Sua filha, Quezia Ribeiro dos Santos, é sócia da editora. Matéria publicada pela Folha de S.Paulo aponta que a filha do pastor trabalha como secretária parlamentar no gabinete do deputado federal João Campos (Republicanos-GO).
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as seis instituições e empresas religiosas a que o pastor Gilmar Santos é ligado.
Como desdobramento da investigação, os repórteres do Estadão revelaram ainda que o Programa Caminho da Escola, cujos recursos saem do FNDE, foi usado para designar dinheiro a prefeitos e estados governados por políticos do Progressistas, e que uma licitação bilionária foi publicada com o intuito de comprar ônibus escolares com preços inflados.
Outros veículos de imprensa trouxeram novos e importantes elementos sobre o caso. A Folha de S.Paulo divulgou um áudio em que o então ministro Milton Ribeiro afirma ter priorizado prefeituras a partir da negociação feita pelos pastores a pedido do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), numa reportagem de Paulo Saldaña. O Globo, por sua vez, trouxe à tona dois prefeitos que receberam pedidos de propina em troca de liberação de recursos do MEC e mostrou a proximidade dos religiosos com parlamentares no Congresso. As reportagens foram assinadas por Daniel Gullino e Geralda Doca e Julia Lindner e Bruno Góes.
Após a publicação das reportagens, o Ministério Público Federal anunciou ter solicitado abertura de inquérito junto ao TCU. A Polícia Federal também comunicou que pretende investigar as suspeitas de que tenha havido favorecimento na distribuição das verbas do ministério. O ex-ministro e autoridades da Educação também foram chamados a prestar esclarecimentos no Congresso Nacional. No entanto, segundo Pires, o MEC, a CGU e a PF não apresentaram o atual estágio das investigações.
Feira livre de passaporte vacinal
O Telegram, mais do que o WhatsApp, é uma ferramenta que proporciona uma infinidade de pautas em decorrência da facilidade de circular pelos mais diversos grupos sem a necessidade de ser convidado ou aceito pelos administradores. Foi nesse mundo de possibilidades que os repórteres Judite Cypreste e Tácio Lorran, do site Metrópoles, descobriram um mercado ilegal de certificados falsos de vacinas contra a covid-19.
Publicada em 14 de março pelo Metrópoles, a reportagem “Certificados falsos de vacina são anunciados no Telegram por R$ 500” identificou diversos anúncios de documentos falsos para pessoas que não querem se vacinar ou vacinar os seus filhos, mas que precisam comprovar a vacinação no trabalho, na escola ou, até mesmo, para viajar.
No dia em que conversei com Cypreste, em 25 de março, um dos grupos investigados pela repórter ainda estava na ativa e contava com a participação de 5.448 membros antivacinas. Outro grupo monitorado por ela contava com 2.784 participantes. Os anúncios continuavam sendo compartilhados mesmo após a publicação da reportagem. Os valores variam entre R$ 300 e R$ 500.
Um dos vendedores dos certificados com quem Cypreste conversou disse que o esquema é feito a partir das Unidades Básicas de Saúde (UBS). O golpista, que seria servidor público, promete acrescentar as doses no sistema do usuário como se ele tivesse sido imunizado naquela unidade. Para completar a fraude, uma dose de vacina precisa ser descartada.
Antes de descobrir a venda ilegal dos certificados vacinais, os repórteres estavam analisando questões comportamentais das pessoas que se declaram antivacinas e quais argumentos elas utilizam para não se vacinarem e não imunizarem os filhos. “Muitos adultos foram se vacinar mesmo negando a vacina e as crianças não. Isso é muito curioso, como você se vacina, mas não vacina seu filho?”, pontuou Cypreste.
A repórter criou um perfil no Telegram apenas para monitorar o que as pessoas estavam falando sobre as vacinas. Na ferramenta de busca do aplicativo, pesquisou palavras-chave relacionadas ao tema e entrou nos grupos que mais lhe chamaram a atenção. A princípio, ela não pretendia conversar com os participantes. Em pouco tempo, porém, Cypreste e Lorran perceberam que a pauta não seria exatamente comportamental, mas de denúncia ao verificar a recorrência dos anúncios sobre as vacinas. Sem se identificar, a repórter conversou com alguns dos vendedores e demonstrou interesse pela compra do passaporte com o intuito de entender como estava se dando o esquema. Os vendedores conversaram com ela, fizeram a proposta, mas também não se identificaram.
#PraTodosVerem: Print da tela do Telegram Web mostra uma busca aleatória pela palavra “vacinas”. Dois grupos antivacinas aparecem como sugestão no aplicativo. Em um dos grupos, há uma mensagem em que o usuário desacredita a eficácia da vacina contra a covid-19.
A apuração durou cerca de três semanas. A publicação da reportagem atrasou alguns dias pois a equipe precisava checar com o jurídico a possibilidade de finalizar a compra do “passaporte vacinal” para confirmar se o esquema funciona ou se era apenas um golpe. Se avançasse com a negociação, segundo seus advogados, o Metrópoles poderia estar cometendo um crime.
“Uma coisa que a gente conseguiu e foi primordial para bater o martelo foi conversar com uma fonte do Ministério da Saúde [que confirmou] ser totalmente plausível que isso esteja acontecendo dessa forma como foi relatada e que tenha uma rede fazendo isso”, contou Judite Cypreste. A confirmação da fonte foi o que garantiu a publicação da reportagem sem a necessidade de finalizar a negociação com os golpistas.
“É uma falha na segurança do Ministério da Saúde, não como foi com o [blecaute] do ConecteSus, é a questão da engenharia social, que faz, por exemplo, um médico ou alguém que trabalha na área da saúde com acesso a esse tipo de dado a usá-lo como forma de retaliação por questões ideológicas”, completou.
Para chegar a uma denúncia como essa, Cypreste ressalta que é preciso olhar para quem está na ponta do problema e sofre as consequências de políticas mal aplicadas ou segue o discurso de quem está no poder. “Às vezes, a gente esquece que o jornalismo é feito de pessoas, não só de quem está em cima. Se um número está mostrando algo, devemos pensar o que está por trás dele. A grande dica é pensar nas consequências; e o Telegram é, realmente, um grande banco de pautas”.
A repórter precisou formalizar uma denúncia como cidadã para que um procedimento fosse aberto pelo Ministério Público Federal. A Polícia Federal não informou se faria alguma investigação.
Dica da Semana
O serviço de impulsionamento de conteúdo em redes sociais já foi incorporado como alternativa de despesa nas campanhas eleitorais e pode ser um ponto de partida para possíveis investigações. Em consulta à base de prestação de contas das eleições de 2020, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por exemplo, é possível verificar que o Facebook Serviços Online do Brasil e o Google Brasil Internet foram duas das empresas mais contratadas para prestação desse serviço.
Só que a análise dessa base pode levar algum tempo, até porque é necessário usar linguagem de programação para manipular todos os dados, e você não precisa esperar as atualizações da prestação de contas das eleições deste ano para começar a navegar pelo assunto. O jornal O Globo revelou em uma reportagem publicada em março que o Facebook e o Instagram já embolsaram R$ 9,9 milhões com anúncios envolvendo temas sociais, eleições e política antes mesmo de ter sido dada a largada da disputa eleitoral.
Esse tipo de levantamento é mais simples no Facebook, uma vez que as informações são publicizadas pela Meta — a empresa controladora do Facebook e Instagram. Basta acessar a biblioteca de anúncios da empresa e explorar os relatórios. Você pode aplicar filtros e baixar os dados em formato CSV. Outra alternativa é acessar a API para fazer pesquisas mais personalizadas. Você pode verificar quem são as empresas ou pessoas que estão investindo em impulsionamento nessas redes, o valor gasto, a quantidade de anúncios, os posts, o perfil do público que visualizou as propagandas e as datas das publicações.
Outra opção é fazer o download das despesas dos candidatos pelo DivulgaCand da Justiça Eleitoral e pesquisar pelo nome do fornecedor. Essa base, porém, não faz a divisão pelo tipo de despesa.
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*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
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