#29 | As relações CACs e crime organizado e os fantasmas em gabinetes
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, como vai? Espero que esteja bem!
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, nós vamos te mostrar uma investigação que revelou como o crime organizado tem usado as facilidades das licenças de Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores (CACs) para ter acesso a armas e munições. Também vamos abordar uma reportagem que mostra o parentesco entre os funcionários contratados no gabinete do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
Na dica da semana, conheça um repositório global criado pelo Columbia Center on Sustainable Investment que dá transparência a uma infinidade de documentos relacionados à agricultura e outros projetos de investimento baseados em terra.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Boa leitura!
Armando o crime organizado
A flexibilização da compra e do porte de armas pelos Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores, os chamados CACs, que ocorreu no governo Bolsonaro, tem facilitado o acesso de organizações criminosas a munições e armamento pesado. Sem transparência no controle da categoria, que é feito pelo Exército, fica difícil para os jornalistas investigarem o que ocorre com os atiradores desportivos que usam do benefício para cometer crimes.
Intrigado com as descobertas que vinha fazendo na apuração sobre Ronnie Lessa — o PM reformado que também era CAC e foi acusado de matar a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes — o repórter especial Rafael Soares, do jornal O Globo, descobriu uma forma: fazendo buscas por processos em todos os Tribunais de Justiça do país. Como ele fez isso? A gente te conta agora.
A reportagem “Armados pelo governo Bolsonaro, CACs usam acesso a material bélico para fortalecer milícia e tráfico”, publicada em 20 de fevereiro, revelou que pelo menos 25 CACs foram acusados ou condenados por fazerem parte de organizações criminosas e atuarem em nove estados. A apuração de Soares mostrou histórias de atiradores desportivos que integram milícias e grupos de extermínio e atuam como fornecedores de armas para facções do tráfico de drogas e assaltantes.
Experiente na cobertura de temas relacionados à segurança pública e justiça, Soares sabia que não teria como fazer um pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI) ao Ministério Público solicitando acesso a todos os processos envolvendo CACs, pois não existe esse tipo de catalogação dos réus no sistema. Por isso, o repórter precisou estabelecer parâmetros criteriosos na sua pesquisa.
“Vários CACs são processados por crimes, mas não necessariamente por crimes que relacionam ele a uma organização criminosa. Encontrei muito mais casos [do que os que estão na matéria], mas a minha linha de corte era: que o CAC tivesse sido condenado ou estivesse sendo processado e esse processo mostrasse a relação dele com o crime organizado”, contou Rafael Soares à Investigadora.
O repórter passou três semanas fazendo buscas por ementas de decisões judiciais em segunda instância nos sites de todos os Tribunais de Justiça do país. Ele definiu seis palavras-chave como ponto de partida, no campo pesquisa livre: atirador, atirador esportivo, atirador desportivo, CAC, colecionador e caçador.
Um dos fatores limitantes da busca é o famoso “segredo de justiça”, que pode impedir o acesso a vários processos. Ainda assim, Soares encontrou casos em que a palavra-chave foi citada no resumo da ementa. Alguns sites do Poder Judiciário disponibilizam os resumos das ementas como resultado no campo de busca por jurisprudência, como ocorre no TJ-RJ. Em outros, como no TJ-SP, não aparecem as ementas de todos os acórdãos, o que demanda abrir as decisões para entender sobre o que se trata.
#PraTodosVerem: Print de um exemplo de pesquisa que fizemos no campo de busca por jurisprudência no site do TJ-RJ com a palavra-chave “atirador desportivo”.
O repórter encontrou cerca de 250 ações judiciais com as palavras-chave. Como ele mesmo disse, foi um trabalho de “formiguinha”, pois precisou analisar todos os processos para chegar aos 25 casos que se encaixaram nos critérios estabelecidos.
Em nenhuma das causas analisadas por Soares, a investigação partiu de uma denúncia do Exército — que é o órgão regulador da categoria. O que aconteceu foi que a polícia estava investigando uma quadrilha e, no meio do caminho, descobriu que o fornecedor de armas era um CAC. Em algumas situações, o próprio acusado tentou se livrar da prisão usando como escudo a certificação de CAC.
“Eu achei 25 um número alto pelas limitações da ferramenta de busca. Precisaria ter sorte de o MP ou a defesa usarem o fato de o réu ser CAC como argumento, para que isso estivesse nas ementas. De fato isso aconteceu, com muita frequência, inclusive”, avaliou.
Depois que chegou aos casos que pretendia trabalhar, o repórter mergulhou nas histórias para entender como se dava essa relação entre o CAC e a organização criminosa. Segundo a apuração, 60% dos réus foram presos ou denunciados à Justiça depois do início do governo Bolsonaro. Soares explica na reportagem como tem se dado a flexibilização do acesso e do porte de armas para a categoria e como especialistas analisam as consequências das alterações no Estatuto do Desarmamento.
“São casos em que os CACs são descobertos não por causa do controle da categoria, por controle interno do Exército, isso não acontece. Quem os pega são órgãos de controle que investigam o crime organizado e acabam esbarrando neles”, completou.
Funcionário fantasma
Uma denúncia de que estaria ocorrendo a prática de “rachadinha” no gabinete do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), levou a repórter Alice Maciel, da Agência Pública, a pesquisar a vida dos funcionários do deputado. Em aproximadamente três meses de investigação, com duas viagens para Maceió, reduto eleitoral de Lira, a repórter conseguiu mostrar a repetida dinâmica da contratação de pessoas da mesma família e a possível existência de um funcionário “fantasma” na reportagem “Os fantasmas de Arthur Lira”. A repórter Aliny Gama colaborou com a apuração.
Alice Maciel viajou para Maceió porque a informação que recebeu de uma fonte dava conta de que o esquema estaria ocorrendo entre os funcionários lotados na capital alagoana e não em Brasília. Na primeira viagem, que ocorreu no fim de dezembro, ela procurou algumas pessoas que trabalhavam com Lira, mas ninguém confirmou a prática da rachadinha.
A viagem, porém, não foi em vão. A repórter acabou descobrindo que sete parentes de um secretário parlamentar do deputado, Djair Marcelino da Silva, foram empregados ao longo de seus três mandatos na Câmara dos Deputados. Djair, como mostrou a reportagem, já havia sido apontado como operador de um esquema de “rachadinha” que ocorreu anteriormente, quando Lira ainda atuava como deputado estadual na Assembleia Legislativa de Alagoas. Mesmo após denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal em 2018, Djair voltou a ser contratado para trabalhar no gabinete do agora deputado federal.
Para fazer o levantamento, a repórter usou informações públicas disponíveis no site da Câmara. Ela procurou os nomes dos servidores que passaram pelo gabinete desde 2011 (ano do primeiro mandato). Para facilitar a busca, sugere Maciel, basta modificar o ano no endereço da página na web.
“A partir desse banco de dados, descobri que Arthur Lira empregou sete parentes do assessor Djair Silva entre 2011 e 2021: dois filhos, três sobrinhos, a ex-mulher e uma prima. Eu também identifiquei outras quatro pessoas com laços familiares entre si que passaram pelo gabinete do deputado federal”, contou Alice Maciel.
O parentesco entre os servidores foi descoberto com buscas pelas redes sociais e entrevistas nas viagens à Maceió. Confirmados os parentescos, a repórter passou a investigar se os servidores exerciam outras atividades para além do gabinete. Ela fez buscas no Google e nos perfis deles nas redes sociais para verificar outros indícios como, por exemplo, sociedades empresariais.
“Foi nessa procura que descobri que um dos sobrinhos do Djair, o Luciano Lessa, é dono de uma gráfica em Maceió, a Sete Comunicação Visual. Para confirmar essa informação, eu fui ao site da Receita Federal. Com o número do CNPJ da empresa é possível ter acesso aos dados básicos do negócio, como endereço, telefone, data de abertura e o quadro societário”, completou.
A mesma pesquisa pode ser feita no CruzaGrafos. Na imagem abaixo, por exemplo, mostramos de quais empresas o deputado Arthur Lira é sócio e quem são as pessoas relacionadas aos empreendimentos.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as relações societárias do deputado Arthur Lira.
A empresa Sete Comunicação Visual também pode ser encontrada no CruzaGrafos. A empresa está cadastrada na Receita Federal com o nome do dono (Luciano José Lessa de Oliveira).
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra a empresa do secretário parlamentar Luciano Lessa.
A descoberta da gráfica a qual Lessa é sócio levou a repórter a monitorar os passos do servidor, no seu retorno a Maceió, em março deste ano. Foi aí que ela descobriu que o secretário parlamentar não aparecia no gabinete — de onde deveria trabalhar. Aqui vale um parêntese importante: na época da investigação do MPF, quando Lira ainda era deputado estadual, os investigadores identificaram que parte dos recursos desviados da Assembleia de Alagoas saía do salário de funcionários fantasmas.
Dica da Semana
Você já ouviu falar no Open Land Contracts? Criado pelo Columbia Center on Sustainable Investment (CCSI), o repositório disponibiliza gratuitamente contratos e documentos relacionados à agricultura, silvicultura, energia renovável e outros projetos de investimento entre governos anfitriões e investidores. São mais de 1.500 documentos de 63 países. Alguns exemplos do que são esses contratos: acordos de desenvolvimento agrícola, contratos de concessão, contratos de manejo florestal, contratos de venda de madeira, entre outros.
Embora os documentos sejam públicos, não são de fácil acesso. Por isso, o Centro de Pesquisa decidiu dar mais transparência a essas informações, uma vez que os investimentos baseados na terra podem afetar a subsistência de comunidades locais e provocar impactos ambientais.
A pesquisa no repositório pode ser feita por país, recurso explorado, data da assinatura do contrato, país anfitrião, nome da empresa investidora e tipo de contrato. A categoria de “anotações” ajuda a encontrar contratos com resumos sobre as obrigações ou compromissos estabelecidos.
#PraTodosVerem: Print da busca por países mostra que há 37 documentos referentes ao Brasil. São contratos relativos a energia solar, madeira e cana de açúcar.
O repositório também permite baixar arquivos em PDF e um arquivo CSV com os resultados da sua pesquisa. Vale a pena conferir!
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*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
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