#3 | Contratos, parentes e imóveis - relações suspeitas
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos
Chegamos ao mês de fevereiro com mais procura por casos didáticos no jornalismo investigativo brasileiro. Tem sido muito interessante e rico escrever sobre algumas das possibilidades de aprimorar o trabalho jornalístico e sobre pessoas tão dedicadas e talentosas no país. O projeto CruzaGrafos é um trabalho feito pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Nesta edição vamos falar de casos recentes e do ano passado, que em comum têm a possibilidade de serem replicados em vários locais do país para outras pessoas ou instituições públicas. Contratos públicos de grande valor celebrados com empresas com sócios do mesmo setor do contratante no mínimo valem uma investigação. Da mesma forma, empresas e imóveis ligados a pessoas de interesse público quando têm operações financeiras anormais também valem mais apuração.
Ressaltamos que não há nenhuma avaliação de mérito do conteúdo das bases de dados por parte do CruzaGrafos, da Abraji, do Brasil.IO ou das (dos) profissionais envolvidos neste projeto. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações e o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela é culpada. Todos os dados devem ser checados, inclusive com os políticos e empresas citados. Sempre deve-se ter cuidado com pessoas e empresas homônimas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Também há um guia por escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma webstorie. E, na semana passada, foi criado um programa de treinamentos sobre o CruzaGrafos voltado para redações brasileiras, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. Para ver edições passadas da Investigadora clique aqui.
Lembrando que o CruzaGrafos é aberto para associadas e associados. Para não associados da Abraji clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link e aqui como apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
Procurar pagamentos e sócios de forma rápida
No Portal da Transparência há uma maneira simples de ver o perfil de uma empresa com os respectivos contratos com o governo federal, de anos passados e mais recentes. Digite "http://www.portaldatransparencia.gov.br/pessoa-juridica/" e depois o CNPJ de interesse (inteiro, com 14 digítos, mas sem pontos, traços e barras).
Isso, por exemplo, permite ver uma das informações obtidas pelos jornalistas Luiz Vassalo e André Spigariol na revista Crusoé. Eles mostraram empresas pertencentes à mesma família com contratos de mais de R$ 45 milhões para fornecer produtos e serviços ao Exército - e os sócios das companhias são ex-militares e seus parentes.
Então, por exemplo, uma das empresas a DFX COMERCIO E IMPORTACAO EIRELI, tem o CNPJ como 14.636.755/0001-91. Ele pode então ser consultado na URL completa: "http://www.portaldatransparencia.gov.br/pessoa-juridica/14636755000191". E na tela que se abre, mais abaixo em "PANORAMA DA RELAÇÃO DA EMPRESA COM O GOVERNO FEDERAL", ao clicar em "RECURSOS RECEBIDOS" vemos o valor de R$ 25.443.155,51, e depois se clicar em DETALHAR surge a lista desses pagamentos, desde 2014.
Ainda no CruzaGrafos é possível ver os sócios dessa empresa e seus nós vizinhos. E, claro, também depois é possível fazer a mesma busca dessas outras empresas no Portal da Transparência.
O trabalho de Spigariol e Vassalo encontrou mais duas empresas da mesma família (AZENATE BARRETO ABREU e CYNTHIA NASCENTE SCHUAB ABREU - lembrando que no CruzaGrafos você pode buscar também pelo nome completo de empresários ou CNPJ inteiro, sem acentuações, traço, pontos e barra). E depois podem ser vistos os pagamentos da primeira e da segunda empresa no Portal da Transparência.
Nomes de servidores costumam existir em portais de transparência dos Estados e municípios. No governo federal isso existe no Portal da Transparência. Especificamente sobre o Exército você pode acessar aqui e para militares antigos um dos caminhos é procurar nomes nos Boletins periódicos que tratam de promoções e outras realizações, como este que traz o nome do sócio da DFX COMERCIO E IMPORTACAO EIRELI.
Dinheiro vivo e imóveis
Cartórios de Registro de Imóveis, Tabelionatos (Notas) e de Títulos e Documentos são uma grande fonte de informações para pesquisar temas como enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro e uso de laranjas. Outra estratégia usada nessas irregularidades é colocar na escritura um valor e por fora pagar mais. Por essa razão, é importante checar o valor de avaliação fiscal que a Prefeitura faz para cobrar o ITBI, que costuma ser 2% valor do imóvel, e descobrir se está muito diferente do valor de venda.
Importante observar que, no Brasil, as transações imobiliárias são públicas (Lei dos Registros Públicos, Lei Federal 6.015, em seu artigo 167), com o intuito de oferecer segurança do ambiente de negócios. Mas as grandes complicações aqui são o tempo maior que se leva numa apuração patrimonial e também o custo - a maioria dos cartórios cobra caro em cada consulta.
Mas, sem dúvida, hoje a pesquisa em cartórios é mais simples do que há 10, 20 anos. A grande maioria dos cartórios nos Estados é ligada em rede, então é possível investigar uma pessoa ou empresa distante. O Registradores BR talvez seja o serviço mais famoso. Permite o acesso às centrais de registro de imóveis de vários estados do Brasil (alguns ainda não estão em serviço).
Para começar a pesquisa, você vai precisar saber o CPF ou CNPJ da pessoa/empresa que deseja investigar. É preciso fazer um cadastro e as pesquisas são pagas por meio de compra de créditos. Existem centrais estaduais que permitem o acesso a todos os cartórios de notas (tabelionatos), cartórios de títulos e documentos e cartórios de registros de imóveis. Mas há estados em que nem todas as cidades já estão conectadas ao sistema.
Juliana Dal Piva e Chico Otavio, de 'O Globo, por exemplo, mostraram que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) pagou durante a aquisição de dois apartamentos comprados na Zona Sul do Rio de Janeiro, entre 2011 e 2016, um total de R$ 150 mil em espécie. O valor corrigido com a inflação equivale a R$ 196,5 mil.
É possível descobrir esse tipo de informação com o CPF do dono do imóvel. O Tribunal Superior Eleitoral no Divulgacand mostra o CPF de todos os políticos do Brasil que concorreram a cargos públicos. Depois pode-se pedir a certidão de ônus reais (traz um resumo de toda história de um imóvel) e, principalmente, a escritura pública de compra e venda (registra cada negociação e como foi feita).
E, antes disso, se o pesquisador não recebeu de uma fonte a informação do imóvel ou cartório em que procurar, a própria declaração de bens dos candidatos no Divulgacand pode ajudar. Ressaltamos ser importante checar, em diferentes anos, a evolução (ou não) de patrimônio. Outra dica é pedir uma lista de todos os imóveis de uma pessoa ou CNPJ no Registradores BR (a lista completa unificada funciona apenas nos Estados de SP e ES) ou em cada cartório de interesse por vez.
“Essa reportagem foi produzida a partir da íntegra dos documentos das escrituras dos apartamentos, no caso do deputado Eduardo Bolsonaro. Não são links públicos disponíveis. Você precisa se cadastrar, pagar pelos documentos e depois eles são enviados para você via sistema ou email”, conta Juliana Dal Piva, que hoje integra a equipe de colunistas do UOL.
Na sua visão, nesses tipos de apurações, o planejamento é fundamental para decidir em que cartórios pesquisar. Para isso, muitas vezes o trabalho com fontes tradicionais também é fundamental.
“É comum, sim, receber dicas de fontes para iniciar esses processos e já fiz reportagens a partir delas. Uma matéria que ficou bem conhecida, sobre os imóveis da ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro, que teve uma dica, por exemplo. A fonte dizia que era para checar se os pagamentos tinham sido em espécie e essa é uma informação que só é pública nas escrituras. Por isso, fui atrás. Mas sempre é importante que o repórter se organize para pedir o que necessita. A maioria dos documentos adicionais que não estão nas bases públicas, sobretudo em cartórios, é paga. Para que você não gaste dinheiro demais ou sem necessidade é importante traçar um plano antes de começar. Vale pesquisar bastante na internet e fazer um planejamento antes de pedir”, lembra.
(reprodução reportagem d’O Globo)
Veja aqui mais informações sobre investigações em cartórios - este foi um conteúdo ministrado no ano passado no curso do CruzaGrafos junto com a Transparência Internacional Brasil.
Dica da semana
Fique atento à Nova Lei de Licitações. Já era dezembro do ano passado e todos preocupados com a pandemia, mas foi aprovado no Senado um novo marco legal para substituir a Lei das Licitações (Lei 8666). Falta a sanção presidencial, mas com a volta do recesso parlamentar isso pode ocorrer logo. Há muitos pontos interessantes e polêmicos, como a criação de um portal nacional de contratações públicas e o seguro-garantia para grandes obras.
E UM AVISO: a Abraji abriu uma vaga de jornalista de dados no CruzaGrafos! As inscrições vão até o dia 4 de fevereiro. Veja os detalhes aqui.
Valeu!
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