#30 | Ocultação de cadáver e a ficha suja de fornecedores de fast food
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, tudo bem?
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, nós vamos te mostrar um levantamento inédito sobre valas clandestinas, que revela a ação do crime organizado na ocultação de cadáveres e a falta de estrutura dos órgãos de segurança pública para dar uma resposta às famílias das vítimas.
Também vamos abordar uma investigação sobre os crimes cometidos pelos fornecedores de carne, laranja, soja e café do McDonald's. Na dica da semana, aprenda a extrair vídeos e metadados de canais no Youtube.
Aproveito para informar que a Abraji, a Transparência Internacional - Brasil e a Fundação Konrad Adenauer estão lançando um curso online gratuito sobre Eleições, Democracia e Corrupção. O CruzaGrafos será apresentado em uma das aulas que terá como foco a investigação de relações de poder por meio de cruzamentos e análises com projetos da Abraji. As inscrições vão até 22 de maio. Não perca essa oportunidade!
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Boa leitura!
Valas clandestinas
Mortes Invisíveis, uma das mais recentes séries de reportagens produzidas pelo Núcleo Investigativo do UOL, publicada no dia 8 de abril no UOL TAB, põe luz em um problema de segurança pública que rodeia os grandes centros urbanos e expõe as fragilidades das instituições públicas: o desaparecimento de pessoas por ação de organizações criminosas e o consecutivo homicídio e ocultação de cadáveres.
Os repórteres Amanda Rossi, José Dacau e Saulo Pereira Guimarães se debruçaram ao longo de quatro meses sobre o quebra-cabeça das valas clandestinas — locais escolhidos, na maioria das vezes, pelo crime organizado, para enterrar pessoas assassinadas. Segundo a apuração, a investigação dos órgãos de segurança é falha, há carência de profissionais para atuarem na identificação dos restos mortais e não existe estatística sobre esse tipo de crime. Para fazer o levantamento inédito que apontou 201 cadáveres achados em 41 valas clandestinas em São Paulo e no Rio de Janeiro desde 2016, os repórteres percorreram vários caminhos.
A primeira triagem ocorreu a partir de notícias publicadas pelos veículos de imprensa, desde os mais tradicionais até os jornais de bairro, sobre ocorrências factuais de valas clandestinas encontradas pela polícia. “A gente fez um recorte dos últimos cinco anos para pegar casos que fossem possíveis de checar com documentação e fonte”, nos contou Saulo Pereira Guimarães. O levantamento considerou apenas as valas em que foram encontrados dois corpos ou mais.
Os repórteres também dispararam pedidos via Lei de Acesso à Informação aos órgãos de segurança dos 26 estados e Distrito Federal com o intuito de verificar o que havia de informação oficial em todas as regiões do país. Os pedidos incluíram número de valas clandestinas encontradas, número de vítimas, se havia identificação dos cadáveres, número de restos mortais que estavam sob a tutela do estado e se havia planejamento para identificação das ossadas.
Como não existe a tipificação de “vala clandestina” nos sistemas estaduais e mesmo os “restos mortais” encontrados nem sempre estão classificados dentro da mesma categoria, pois podem entrar na classificação de homicídio, por exemplo, as respostas dos órgãos de segurança não foram satisfatórias em sua maioria. Além de muitas negativas, os jornalistas receberam alguns dados incompletos. Ainda assim, rendeu uma visualização com os números de restos mortais não identificados por UF. “É muito bom que exista esse recurso, mas ainda é uma coisa que não é bem compreendida pelas instâncias públicas”, avaliou Guimarães.
#PraTodosVerem: Print de gráfico da reportagem ilustra o número de restos mortais não identificados por estado. SP está na frente, seguido do AM, BA, RJ, MG, GO, PE, PB, RN, SC e DF.
Para deixar a pauta de pé, os repórteres decidiram colocar uma lupa sobre casos das suas regiões de cobertura: Rio e São Paulo. A proximidade física foi necessária em alguns momentos da apuração, como quando Guimarães precisou ir pessoalmente em algumas delegacias para checar informações que não obteve via LAI, assessoria de imprensa ou telefone.
Após levantar todos os casos divulgados pela imprensa, os repórteres passaram a checar as informações com as fontes oficiais. Em São Paulo, foi possível cruzar a listagem de notícias com os boletins de ocorrência publicizados pela Secretaria de Segurança Pública. Até casos que não tinham sido noticiados foram descobertos. No Rio, porém, o caminho foi mais complexo. As informações foram confirmadas com o apoio de fontes, nas próprias delegacias e pela Lei de Acesso à Informação com pedidos individuais sobre cada uma das ocorrências noticiadas pela imprensa.
“Se não fosse a cobertura do noticiário de todo dia acompanhando esse assunto, não teríamos o primeiro insumo para chegar à informação oficial. Foi muito importante o trabalho de todos os nossos colegas, de todas as redações”, valorizou Guimarães.
Outros dados complementares que foram obtidos ao longo da apuração também contribuíram para mapear a realidade que estava sendo abordada. O Disque Denúncia do Rio, por exemplo, disponibilizou o número de relatos recebidos sobre “cemitérios clandestinos” nos últimos três anos com detalhes sobre localização. Já o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense, a pedido da reportagem, cruzou o número de desaparecimentos registrados no Rio com o mapa das áreas controladas pelo crime organizado. A Rede Integrada de Bancos de Perfis Genético também forneceu dados para além dos relatórios oficiais.
Uma fonte que pesquisa o crime de ocultação de cadáver no Rio disponibilizou um acervo (em papel) de boletins de ocorrência registrados entre 2013 e 2014. “Fiquei um mês olhando BO por BO e digitalizando”. O material serviu de suporte para as pesquisas e até mesmo para cavar histórias.
“[Ouvir as famílias] foi a parte mais desafiadora, todo o resto foi muito braçal, a gente sabia que o Estado tinha a obrigação de fornecer os dados, mas as famílias não tem obrigação nenhuma de falar. Mas eu acredito que fomos bem sucedidos nisso, encontramos pessoas que estavam dispostas a falar e mostrar a dimensão do problema”, contou.
A publicação da série de reportagens resultou em mobilização na Assembleia Legislativa de São Paulo, audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos no Senado e tem servido de material de apoio para organizações da sociedade civil que atuam com o tema.
A ficha suja de fornecedores do McDonald’s
Investigação feita pela equipe da Repórter Brasil identificou quem são os fornecedores da rede de fast food McDonald’s envolvidos com desmatamento ilegal, inclusive na Amazônia, trabalho precário e uso de mão-de-obra escrava em suas redes de negócios. A reportagem de André Campos, Poliana Dallabrida e Isabel Harari foi publicada no dia 3 de março, acompanhada de um relatório de 25 páginas, que traz os detalhes dessa apuração.
Poliana Dallabrida, que além de repórter é pesquisadora sobre direitos humanos e crimes ambientais na Repórter Brasil, nos contou quais ferramentas e fontes de informação foram usadas para detectar as empresas.
“Investigar os impactos socioambientais de grandes corporações é um dos objetivos centrais da Repórter Brasil. O McDonald’s, por sua vez, é o segundo maior empregador privado do mundo. A carne bovina, o café e o suco de laranja são exemplos de itens de origem brasileira frequentemente presentes nos cardápios da rede ao redor do mundo”, contextualizou Dallabrida.
“O Brasil também é um relevante fornecedor da soja utilizada para alimentar os frangos vendidos nos restaurantes. Faltava, contudo, uma investigação que apontasse as violações socioambientais presentes na cadeia de fornecimento desses produtos”, completou.
Com o objeto de pesquisa definido, a equipe passou a mapear os principais fornecedores desses quatro itens para restaurantes da rede, especialmente na Europa e Estados Unidos, que, segundo Dallabrida, possuem exigências socioambientais mais rigorosas. Um dos pontos de partida foi o cruzamento de algumas bases de dados, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), as áreas de desmatamento apontadas pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), a inscrição estadual da Fazenda, que possui informações dos contribuintes aos fiscos estaduais, e dados da Receita Federal.
Outra fonte de pesquisa foi o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), do Incra, que permite verificar as fazendas cadastradas por um proprietário. Para fazer a consulta, é preciso ter em mãos o CPF do investigado. “O Sigef também permite baixar o shapefile da propriedade, que pode ser usado no cruzamento de dados de georreferenciamento, como o próprio CAR e as detecções de desmatamento do Prodes”, recomendou a repórter.
A partir desses cruzamentos, que também incluiu um banco de dados próprio da Repórter Brasil, foi possível checar se os suspeitos respondiam a infrações no Ibama ou nas secretarias de meio ambiente estaduais e se já entraram para a lista suja do trabalho escravo.
Uma das empresas investigadas foi a brasileira Sucocítrico Cutrale, que é fornecedora da Coca-Cola, que, por sua vez, é responsável pela fabricação do suco de laranja vendido pelo McDonald’s. Em reportagem publicada antes da pesquisa, a Repórter Brasil denunciou violações trabalhistas cometidas pela empresa durante a pandemia.
No CruzaGrafos, é possível verificar que a Cutrale é uma holding, tem uma fazenda entre as empresas associadas e responde a nove autos de infrações no Ibama.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as relações empresariais da Cutrale, quem são seus sócios e os números dos autos de infração.
Além da Cutrale, outras empresas foram investigadas pela Repórter Brasil, como a brasileira JBS, que compreende a produção de carne bovina, a torrefadora italiana Segafredo, e a produtora de soja SLC Agrícola.
“Essa busca por trabalhadores se deu por intermediação de sindicatos e federações estaduais de assalariados rurais, mas foram muitos ‘não conheço ninguém’ ou ‘não quero falar’ até encontrarmos trabalhadores que topassem contar as violações trabalhistas que acontecem na empresa”, contou Poliana Dallabrida.
“O mapeamento de processos trabalhistas movidos por ex-trabalhadores da Cutrale, a análise de autos de infração trabalhista da empresa no Ministério do Trabalho e Previdência e entrevistas com procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) ajudaram a complementar a apuração do caso”, acrescentou.
Três centrais sindicais (duas brasileiras e uma francesa) enviaram uma notificação ao McDonald’s solicitando a implementação de um plano de vigilância para prevenir danos aos direitos humanos, meio ambiente, saúde e segurança do trabalho. O relatório da Repórter Brasil ajudou a embasar a notificação dos sindicatos no que diz respeito à argumentação sobre desmatamento, trabalho escravo e outras violações trabalhistas.
Dica da Semana
O YouTube Data Tools é uma ferramenta que possibilita a extração de vídeos, comentários e conexões por meio da API do YouTube. A plataforma foi criada pelo professor associado de Novas Mídias Digitais e Cultura Digital na Universidade de Amsterdã e pesquisador da Iniciativa de Métodos Digitais, Bernhard Rieder. Dicas de uso podem ser encontradas no blog dele.
Uma das possíveis aplicações desta ferramenta é a pesquisa por canais na aba Video List. Basta informar no campo Channel Id o código do canal que você quer investigar e solicitar a busca. Para encontrar o código de um canal que tem a sua identidade personalizada e não mostra o número de identificação no link, existe um macete. Você precisa clicar em qualquer um dos vídeos do canal e em seguida retornar para a página principal. O nome da página será substituído pelo código. Confira na imagem abaixo:
#PraTodosVerem: Print mostra o canal de Bolsonaro no YouTube. O código está destacado em vermelho no link da página.
Após a requisição, o YouTube Data Tools vai processar os dados e entregar uma planilha em formato .tab. Se você for trabalhar com esses dados no Google Sheets, não esqueça de selecionar a opção “guia” para separar os dados.
Como exemplo, solicitamos ao Youtube Data Tools que fizesse uma busca para o canal do presidente Jair Bolsonaro. A planilha gerada pela ferramenta apresentou metadados de mais de 3 mil vídeos publicados no canal. E o que tem nessa planilha? Os códigos de identificação de todos os vídeos, número de visualizações, número de curtidas e descurtidas, tempo de duração dos vídeos, títulos e descrições dos vídeos, entre outras informações.
#PraTodosVerem: Print da aba Video List, no Youtube Data Tools, mostra o caminho da busca destacado em vermelho.
Um dos pesquisadores de referência nessa área no Brasil é Guilherme Felitti, que monitora canais de extrema direita no Youtube, é fundador da Novelo Data — uma empresa de dados digitais, e professor do Insper. O Youtube Data Tools é uma das ferramentas apresentadas por Felitti no curso de Jornalismo de Dados.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
Para ler as edições passadas da Investigadora, clique aqui.
Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
O que você achou desta edição da Investigadora?
Ótima • Boa • Regular • Ruim
>> Divulgue a Investigadora: encaminhe a newsletter para seus amigos e compartilhe os conteúdos nas suas redes sociais.