#31 | Emendoduto da pavimentação e a exploração de ouro na Amazônia
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, como vai?
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, nós vamos te mostrar uma série de reportagens que revelou um esquema nas licitações da Codevasf para acomodar emendas parlamentares. Também vamos abordar um levantamento sobre requisições de mineração em terras indígenas e o andamento do garimpo ilegal nessas áreas.
A Lei de Acesso à Informação, que determina uma série de diretrizes para transparência de informações e documentos públicos, completou dez anos em maio. A LAI foi conquistada após anos de mobilização de jornalistas, representantes da administração pública e da sociedade civil.
Apesar da legislação, nem sempre os dados estão disponíveis em formatos acessíveis. Por isso, jornalistas, programadores e profissionais de outras áreas, que são ativistas dos dados abertos, desenvolvem meios para facilitar o acesso e aproximar a informação do público. Um desses projetos está na nossa dica da semana.
E um recado para os jornalistas investigativos nos estados da Amazônia Legal: a Abraji e a Transparência Internacional Brasil vão fornecer dez passagens aéreas e hospedagem para trazer esses profissionais ao 17º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji, em agosto, em São Paulo. Veja mais informações e como se inscrever aqui. As inscrições vão até 8 de junho de 2022.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Boa leitura!
Codevasf acomoda emendas parlamentares
Quais empresas assumiram as obras públicas no país após a Operação Lava Jato — quando as empreiteiras que dominavam o mercado foram tiradas de cena? Essa foi a indagação que levou o experiente repórter da Folha de S.Paulo Flávio Ferreira, que também é especialista em Justiça, a se unir ao cientista de dados Guilherme Garcia, do DeltaFolha e ao repórter da sucursal de Brasília Mateus Vargas para investigar as licitações envolvendo obras de pavimentação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf ), que hoje é comandada pelo Centrão.
O trabalho conjunto resultou na publicação de uma série de reportagens entre 9 de abril e 4 de maio, na Folha de S. Paulo, que revelou as manobras da Codevasf para se tornar o caminho preferencial de escoamento das emendas parlamentares, especialmente as do relator. A equipe da Abraji publicou recentemente também uma coleção no Pinpoint sobre contratos na Codevasf e emendas do relator - veja aqui.
A estatal foi criada para desenvolver bacias hidrográficas de forma sustentável, por meio de projetos de irrigação. Ao caminhar pelas estradas do sertão nordestino, em decorrência de outra pauta, Flávio Ferreira verificou que a estatal estava se dedicando a outro ramo, bem distinto da sua vocação: a pavimentação pública.
“Eu nunca pensei que uma pauta fosse pregar no meu pé e foi o que aconteceu em uma rua lá em Petrolina (PE). Os pés da gente ficavam presos no asfalto porque estava muito quente e ele derretia. Então, aquilo me chamou a atenção, pela baixa qualidade da pavimentação”, contou Ferreira.
Foi aí que o repórter uniu os pontos e passou a investigar as licitações de pavimentação publicadas pela Codevasf em formato de pregão eletrônico. Pesquisas iniciais no Google com palavras-chave como “pavimentação” e “Codevasf” foram úteis para identificar o padrão dos enunciados das licitações, que traziam no título o motivo da licitação (pavimentação asfáltica nas vias urbanas) e o estado onde a obra seria executada (Paraná, por exemplo). As pesquisas no site de busca retornaram extratos dos Diários Oficiais que forneceram uma informação chave: o número do pregão.
Com o número em mãos, o repórter pesquisou detalhes dos pregões no Portal de Compras do Governo Federal. Ferreira anotou pontos importantes, como o nome das empresas vencedoras, valor oferecido, quantas empresas participaram e outros dados em uma planilha. Duas constatações foram possíveis a partir daí: que houve um salto no número de licitações de 2020 para 2021 e que a empreiteira Engefort, com sede no Maranhão, liderou os repasses da Codevasf no último ano. Em pesquisa no CruzaGrafos, é possível verificar quem são os sócios e as empresas ligadas à Engefort.
PraTodosVerem: Print do Cruzagrafos mostra quem são os sócios da Engefort e quais são as outras empresas ligadas a eles.
As pistas encontradas por Ferreira permitiram que Vargas e Garcia mergulhassem no universo de licitações e buscassem evidências de que as verbas de emendas parlamentares estavam sendo direcionadas para as obras de pavimentação da Codevasf.
Uma das ferramentas de busca usadas pela equipe foi o Siga Brasil — portal do Senado que dispõe de informações sobre o Orçamento da União. “Fizemos algumas pesquisas que mostraram o crescimento das ações da Codevasf, puxando pela verba das emendas parlamentares. Também anotamos quais foram as maiores [empresas] beneficiadas”, contou Vargas.
Os repórteres fizeram pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre reuniões da Codevasf com os representantes das empresas e solicitaram documentos que indicassem a origem dos recursos. O Portal da Transparência também serviu como fonte de pesquisa dos valores empenhados em obras que chamaram a atenção. “Alguns empenhos indicavam a origem da verba, inclusive com qual parlamentar fez a indicação da emenda, mesmo no caso das emendas RP-9 [do relator]”, completou Vargas.
Pesquisas sobre ações judiciais ou possíveis investigações da polícia e do Ministério Público envolvendo as empresas e seus representantes permitiram que os repórteres encontrassem indícios adicionais, como a existência de laranjas no quadro societário da Construservice.
PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as relações dos sócios da Construservice e autos de infração do Ibama aos quais algumas delas respondem.
Guilherme Garcia se encarregou de estruturar os dados encontrados pelos colegas, especialmente os do Portal da Controladoria-Geral da União (CGU), onde é possível verificar a execução diária do Orçamento público. “Os componentes do processo que leva da emenda parlamentar até a ordem de pagamento estão desarticulados da forma como a CGU os disponibiliza”, destacou. Para organizar as informações, ele usou duas linguagens de programação: SQL, para manipulação simples, e Python, para análises mais complexas, com tabelas sumárias e gráficos.
O levantamento de dados foi relevante não só pelas descobertas, mas para embasar o trabalho de campo feito por Flávio Ferreira no Maranhão e Tocantins. Ele conferiu pessoalmente a péssima qualidade da pavimentação e descobriu que uma das concorrentes da Engefort nos pregões era uma empresa de fachada.
“Esse é um exemplo de como você pode usar o jornalismo de dados para ir a campo muito mais preparado e sabendo onde apostar”, concluiu Ferreira.
Contratos suspeitos da Codevasf foram suspensos pelo Tribunal de Contas da União (TCU) após a publicação da série de reportagens.
Manobras para exploração de ouro em terras indígenas
Em 2 de março, quase uma semana após o início da guerra na Ucrânia, o presidente Jair Bolsonaro comentou em sua conta no Twitter que o Projeto de Lei 191/2020 precisava ser aprovado para permitir “a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em terras indígenas”. Como justificativa, falou em uma eventual crise do potássio (um dos minérios mais importantes para a indústria de fertilizantes) decorrente da guerra, o que, segundo ele, afetaria o agronegócio.
Porém, um levantamento feito pelo repórter Fábio Bispo, do site InfoAmazonia, mostrou que os maiores beneficiados com a liberação do PL serão os exploradores de ouro, não de potássio. A reportagem publicada em 24 de março revela que 2.467 pedidos de mineração registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM) estão em terras indígenas ou são contíguos aos territórios e que 43% das requisições são para minerar ouro. O potássio aparece em quarto lugar e representa 2,9% dos pedidos.
Até a publicação da reportagem, havia um total de 280 solicitantes, entre mineradoras, garimpeiros e cooperativas, que requeriam autorização para explorar 3,7 milhões de hectares, o que equivale a uma área quase do tamanho da Suíça, segundo a reportagem. Os territórios mais afetados são Yanomami, Munduruku e Kayapó — que também sofrem com uma série de conflitos.
A principal fonte de informação para fazer o levantamento foi o projeto Amazônia Minada, do próprio InfoAmazonia. “O projeto analisa diariamente os dados geográficos dos pedidos registrados na ANM. A ferramenta compara os polígonos [geográficos] dos pedidos com as bases oficiais que delimitam terras indígenas e unidades de conservação de proteção integral, devolvendo como resposta ao usuário apenas os pedidos que estão nessas áreas, onde a mineração é proibida”, explicou Bispo.
Qualquer pessoa pode navegar pela ferramenta e fazer pesquisas pelo nome da Terra Indígena, etnia, e nome de uma empresa ou pessoa física que quer fazer garimpo. É possível fazer download das consultas e acompanhar as atualizações da ferramenta pelo Twitter. Os dados também estão disponíveis para consulta no site da ANM.
#PraTodosVerem: Print mostra o dashboard do projeto Amazônia Minada com os dados estatísticos sobre os requerimentos e localização dos territórios. A plataforma disponibiliza instruções de como fazer as pesquisas.
O Amazônia Minada foi idealizado pelo jornalista Hyury Potter, que já apareceu na Investigadora, e lançado em 2019 com uma bolsa do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ). O projeto recebeu apoio do Rainforest Journalism Fund com o Pulitzer Center, o que permitiu incluir terras indígenas no levantamento, e recebeu financiamento da Amazon Watch e desenvolvimento da Geodatin, para lançar o painel interativo atual. A coordenação do desenvolvimento e da pesquisa é dos diretores do InfoAmazonia Stefano Wrobleski e Juliana Mori.
Para fazer a análise, o repórter identificou as áreas requeridas para mineração dentro das terras indígenas. Em seguida, verificou quais pedidos apresentavam sinais de exploração de garimpo. Nessa etapa da apuração, ele fez uma pesquisa visual sobre imagens de alta resolução por meio das ferramentas QGIS e Google Earth. Para fazer o cruzamento, ele usou as informações georreferenciadas da Funai e comparou as marcas de garimpos que estavam dentro do território. As ferramentas foram úteis para buscar os locais suspeitos no mapa, além de permitir verificar a evolução das marcas de garimpos ao longo do tempo.
“Quando identificamos que um garimpo requerido recentemente em terras indígenas começa a apresentar marcas de desmatamento e exploração, temos no mínimo os principais indícios da falta de fiscalização, que é o que normalmente acaba resultando na prática de crimes. Além disso, manter os requerimentos ativos ou registrar novos pedidos nessas áreas é um indicativo bem forte de que esses pedidos aguardam a aprovação do PL 191”, explicou Bispo.
A pauta foi elaborada a partir das declarações de Bolsonaro, mas a análise sobre a mineração em terras indígenas é anterior a isso. Fábio Bispo monitora o assunto há cerca de um ano e, em novembro do ano passado, começou a catalogar e acompanhar algumas dessas áreas requeridas.
Dica da Semana
Igor Laltuf, economista e pesquisador nos laboratórios ETTERN e CiDiMob no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolveu o pacote DAIL (Data from Access to Information Law), que possibilita acesso aos dados dos pedidos solicitados via Lei de Acesso à Informação no âmbito do executivo federal. O pacote foi desenvolvido em R — que é uma linguagem de programação, e está disponível no GitHub — uma plataforma de hospedagem de código-fonte em que os usuários compartilham e contribuem com projetos privados ou abertos.
Na descrição do projeto, no campo README.md, Marques ensina como instalar o pacote e dá exemplos de como requisitar as informações por meio de palavras-chave. Ele também disponibiliza um passo a passo para quem não sabe usar a linguagem de programação. Não esqueça de dar uma olhadinha no dicionário de dados para entender quais são as informações disponíveis.
PraTodosVerem: Print da descrição sobre o pacote DAIL disponível no perfil de igorlaltuf, no GitHub.
Laltuf começou a trabalhar com pesquisa em 2013 e, desde então, faz pedidos via Lei de Acesso à Informação. “Como muitas vezes os pedidos demoram para serem respondidos, eu me perguntava se alguém já havia feito outro pedido com a mesma informação que eu precisava”, nos contou o economista. Foi a partir desta inquietação que ele desenvolveu o projeto.
“Hoje, percebo que o potencial [do projeto] vai muito além, já que permite análises robustas sobre as respostas/justificativas dadas pelo poder público à sociedade civil. É um pequeno esforço no sentido de facilitar o acesso aos dados públicos, já que ainda temos um longo caminho a percorrer nesse sentido”, avaliou Laltuf.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
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