#32 | Desvio de recursos públicos e o destino do orçamento secreto
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, como vai? Espero que esteja bem!
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, nós vamos te mostrar uma investigação que desvendou um esquema bilionário de desvio de recursos do programa Farmácia Popular, do governo federal. Também vamos apresentar uma reportagem que revela o destino dado aos recursos do “orçamento secreto” e como as ferramentas de dados foram úteis na apuração.
Na dica da semana, trazemos como sugestão o blog de um dos jornalistas de dados mais premiados do mundo, no qual ele compartilha técnicas e ferramentas que podem ser úteis para a sua investigação.
Um minuto de atenção
A Abraji, as organizações que assinam esta manifestação pública e nós da Investigadora expressamos profundo pesar e indignação pelo assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira. Ambos eram profissionais capacitados e experientes na cobertura e atuação na Amazônia. Mesmo em condições difíceis, prestaram um grande serviço à sociedade garantindo o direito de acesso à informação. Reforçamos os pedidos às autoridades nacionais e internacionais para que a apuração do crime seja transparente e séria, e repudiamos as afirmações do presidente, que transfere a responsabilidade do Estado para as vítimas.
Nos primeiros quatro meses do ano, entre janeiro e abril, a Abraji identificou 151 episódios de agressão física e verbal ou outras formas de cercear o trabalho jornalístico no Brasil. O monitoramento aponta que houve aumento de 26,9% em relação ao mesmo período do ano passado, o que demonstra a piora do cenário e o risco à liberdade de imprensa. Uma cartilha publicada no ano passado aponta medidas legais que devem ser tomadas para proteger jornalistas contra ameaças e assédios.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Boa leitura!
Farmácia fantasma
O repórter investigativo Giovani Grizotti, da RBS TV, afiliada da TV Globo no Rio Grande do Sul, e que produz reportagens para o Fantástico, revelou um esquema bilionário de desvio de recursos do Programa Farmácia Popular. A matéria foi ao ar no dia 15 de maio e nós conversamos com ele para conhecer os bastidores desta investigação.
A reportagem de quase 15 minutos, que levou dois meses para ser produzida, revela estratégias usadas por golpistas para desviar dinheiro público. Nós já mostramos aqui uma reportagem sobre a venda de certificados falsos de vacinas oferecidos pelo Telegram, cujo caminho para serem obtidos era o ConectSUS — aplicativo que serve como comprovante de vacinação contra a covid-19. Grizotti também contou essa história para o Fantástico.
Só que, desta vez, o aplicativo acabou ajudando a desmascarar golpistas ao mostrar ao usuário a lista de remédios que ele mesmo retirou na rede de farmácias populares. Um morador de São Paulo, por exemplo, descobriu que alguém havia retirado 1.200 unidades de duas medicações no seu CPF. Além de nunca ter comprado os remédios, ele não sofria das doenças para as quais as medicações eram indicadas.
Grizotti já estava monitorando essa história desde o ano passado, quando descobriu um esquema parecido, mas com proporções locais. Mais recentemente, fez contato com o microbiologista Átila Iamarino, que teve seus dados alterados no ConectSUS, e descobriu outros casos pelo país envolvendo a lista de remédios, uma vez que as vítimas passaram a publicar suas histórias nas redes sociais do especialista.
“Esse foi o gancho que faltava para a gente transformar o assunto em um VT nacional para o Fantástico. A gente tinha situações atuais e casos de investigações pelo Ministério Público Federal e condenações da Justiça”, contou o repórter.
Um levantamento feito a pedido do repórter pelo Tribunal de Contas da União (TCU) apontou as 10 farmácias brasileiras que mais praticaram fraudes. Juntos, os estabelecimentos desviaram R$ 60 milhões do programa. Embora tenha encontrado o gancho para a reportagem, Grizotti ainda precisava descobrir como se dava a fraude.
“A gente sabia que alguém se fazendo passar por cidadãos simulava a retirada desses medicamentos e depois fazia a cobrança dos valores ao governo federal, era uma venda fictícia. Mas ainda não sabia se tinha um crime organizado por trás”.
Foi quando uma fonte de Brasília compartilhou com o repórter links de sites na internet que divulgam anúncios de CNPJs de farmácias que não operam mais e só existem no papel. O cadastro para fornecer remédios por meio do programa de farmácias populares do governo federal, porém, se mantinha intacto.
Em uma busca no Google, é possível observar a existência desse mercado de CNPJs. Há tanto publicações com dicas de como comprar e vender CNPJ, quanto anúncios em sites de comércio, como o OLX.
Com as informações sobre as vendas e os casos das vítimas em mãos, Grizotti fez uma busca nas juntas comerciais dos estados e descobriu um caso de uma farmácia que funcionou até 2020 em Porto Alegre e foi comprada por dois sócios de Luziânia, em Goiás, onde havia uma investigação da PF sobre o golpe. No site da Junta Comercial, é possível verificar informações sobre compra e venda. Uma equipe da TV Anhanguera, afiliada goiana da Globo, foi ao novo endereço da farmácia e constatou que no lugar funcionava uma agropecuária.
O repórter também pesquisou o assunto por jurisprudência nos Tribunais Regionais do Trabalho em todos os estados, mas especificamente nos da região Sul que geograficamente são próximos para o trabalho de campo. A busca foi feita com as palavras-chave: “farmácia popular” e “fraude”.
“Foi assim que a gente buscou uma personagem em Santa Catarina, a partir das pesquisas em ações trabalhistas. É uma fonte muito boa porque, muitas vezes, o empregador revela a prática de vários crimes que não necessariamente foram apurados”, contou.
No caso mencionado pelo repórter, a funcionária entrou com uma ação por danos morais contra o chefe, dono de uma farmácia popular, porque ele havia retirado medicamentos em seu nome. A vítima só descobriu a fraude após ter sido chamada para prestar depoimento em uma auditoria do Ministério da Saúde, que constatou a movimentação atípica no nome da funcionária.
Por fim, o repórter conseguiu, por meio de uma fonte, um relatório da Controladoria Geral da União apontando o desvio de R$ 2,3 bilhões entre 2015 e 2020. Esse relatório foi divulgado no momento em que o Ministério da Saúde tentava contornar a situação afirmando em entrevista coletiva de imprensa que estava tomando providências contra as fraudes.
Transparência oculta
Na segunda semana de maio, o Congresso Nacional cumpriu uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) e deu “transparência” às emendas do relator — aquelas conhecidas como “orçamento secreto”. Atento à publicização dos dados, o repórter Lucas Maia, da Agência Tatu, se debruçou sobre os documentos para verificar o destino dado ao Orçamento pelos deputados e senadores alagoanos. Para isso, ele contou com a ajuda de Gabriel Ferreira, que faz estágio na agência, e de algumas ferramentas de dados.
Em três dias de trabalho, eles descobriram que cinco deputados federais destinaram R$ 484 milhões de recursos para Alagoas — a maior parte para as prefeituras. No país, as indicações dos parlamentares somaram R$ 36 bilhões. A reportagem foi publicada em 12 de maio.
A primeira etapa do trabalho foi baixar os 101 PDFs do site. Como havia muitos documentos e Maia não queria perder tempo, usou Python (linguagem de programação) para fazer o download de todos os arquivos de forma automática.
Em seguida, Maia analisou a qualidade dos PDFs enviados pelos deputados e percebeu que não havia padrão e, muito menos, organização. Alguns PDFs até tinham uma tabelinha com as informações. Para extrair os dados do arquivo em formato PDF e transformá-los em CSV, o repórter usou o Tabula — uma ferramenta com interface simples e gratuita.
Porém, alguns parlamentares fizeram questão de dificultar o trabalho. “Alguns deles enviaram uma tabela feita no computador, impressa e escaneada. O que tinha lá era só uma imagem, não tinha uma planilha, tinha uma foto da planilha”, descreveu Maia. Nesses casos, foi necessário fazer o trabalho manual de copiar as informações para uma tabela no Google Sheets.
Outra ferramenta que ajudou a dupla a ganhar algumas horas de trabalho foi o Pinpoint, pois ele dispõe de uma função que filtra pessoas, organizações e locais citados nos documentos e os organiza em uma lista. Este mecanismo permitiu que os repórteres identificassem a prestação de contas dos parlamentares alagoanos. Segundo Maia, também foi possível usar a ferramenta para fazer buscas nos arquivos em formato de imagem, embora a qualidade não fosse a mesma.
Depois de passar os filtros, encontrar as informações que interessavam e tabular os dados, o repórter partiu para a visualização dos dados. Maia usou Treemaps, que é uma técnica de visualização para representar dados hierárquicos usando retângulos aninhados, que está disponível no Flourish. A ferramenta ajudou a compreender a dimensão das informações coletadas e também foi útil para transmitir a informação aos leitores de forma interativa.
#PraTodosVerem: Print da visualização dos recursos indicados pela deputada Tereza Nelma às emendas do relator.
Depois de analisar os dados, Lucas Maia repercutiu as informações ligando para os deputados. Alguns toparam falar sobre a destinação dada às emendas, inclusive com autoelogios, outros não quiseram falar e alguns sequer atenderam o telefone.
No CruzaGrafos, é possível verificar se os deputados são ligados a empresas. O deputado e presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por exemplo, é sócio de três empresas. Tem como um dos sócios seu pai, Benedito de Lira, que foi eleito prefeito do município de Barra de São Miguel em 2020 e recebeu recurso das emendas do relator.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as candidaturas de Arthur Lira e do pai dele, Benedito de Lira, ambos do PP, e as conexões societárias entre eles e outras pessoas.
“O pedido do STF dizia que os dados deveriam ser padronizados em um formato específico. Mas não estavam, cada um colocou da maneira que quis, alguns até em texto corrido. É uma transparência pela metade. É melhor do que nada, mas dificulta. Não deveria ser necessário escavar tanto para chegar a uma informação de interesse público”, concluiu Maia.
A equipe da Abraji também publicou recentemente uma coleção no Pinpoint sobre contratos na Codevasf e as emendas do relator - veja aqui.
Dica da Semana
Você conhece o Online Journalism Blog? Escrito pelo premiado jornalista de dados e professor Paul Bradshaw, o blog é uma fonte rica de ferramentas e técnicas que podem ser usadas em investigações jornalísticas. O professor faz análises e dá dicas sobre jornalismo multiplataforma, visualização de dados, narrativa interativa, técnicas de busca e OSINT. As postagens contém uma introdução sobre o assunto e um vídeo explicativo bem objetivo, cujo tempo de duração varia de 10 a 20 minutos.
Nas publicações da última semana, Bradshaw trouxe exemplos de como as APIs podem ser fontes de dados muito úteis para os jornalistas e os formatos de dados que elas retornam. Também há postagens com dicas de narrativas para redes sociais, SEO e storytelling. Vale a pena acompanhar!
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
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