#33 | Extração ilegal de manganês e o open bar do antialérgico
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, espero que esteja bem!
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, nós vamos te mostrar como uma denúncia de extração ilegal de manganês com notas frias impactou em uma das maiores mineradoras globais e fez caminhoneiros fugirem em comboio de área explorada numa tentativa frustrada de escapar da fiscalização.
A segunda reportagem abordada nesta edição revela a estratégia de uma indústria farmacêutica para promover um novo antialérgico entre os pediatras.
Na dica da semana, saiba como monitorar fóruns anônimos que disseminam informação falsa e discurso de ódio na web e quais os cuidados que deve tomar para não cair em cilada.
Você viu que as inscrições para o 17º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, promovido pela Abraji, já estão abertas? A programação está distribuída em cinco dias, de quarta-feira a domingo. Nos dias 3 e 4 de agosto, será realizada a parte on-line e gratuita do evento. A versão presencial e paga ocorrerá de 5 a 7 de agosto, na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), em São Paulo. O último dia do Congresso será dedicado à quarta edição do Domingo de Dados e nós estaremos lá. Confira mais detalhes aqui.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Boa leitura!
Notas frias embalam exportação de manganês
Experiente na cobertura de mineração e meio ambiente, o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo, fez uma denúncia de extração ilegal de manganês no Pará que levou a uma série de desdobramentos e envolveu a Vale — uma das maiores mineradoras globais. A reportagem “Exportações bilionárias de manganês são operadas com notas frias e extração ilegal”, publicada em 18 de abril de 2022, revelou um esquema fraudulento montado para exportar o minério sem cair na fiscalização portuária.
Segundo a reportagem, o manganês, que é usado como insumo para produção de aço, era extraído em larga escala de uma área conflagrada pelo desmatamento, garimpo e grilagem de terras na porção Sudeste do Pará. Enquanto a exploração ocorria em áreas nas quais a atividade não é legalizada, os documentos de extração eram emitidos em outros estados, onde não havia minas com atividades de exploração.
Borges recebeu a informação da suspeita de fraude por meio de uma fonte. Ele já esteve na região fazendo outras coberturas, oportunidade em que estabeleceu contato com várias fontes locais e ligadas aos órgãos fiscalizadores como Ministério Público Federal, Ibama, ICMBio, Funai e Defensoria Pública da União (DPU).
“O primeiro alerta que me deram foi de que a coisa estava completamente fora de controle na região que cerca Marabá. Aquilo ali é um galpão de pautas de todo tipo que você pode imaginar”, sugeriu Borges.
O repórter explica que a exploração não é nada discreta, pois o valor do manganês está no maior volume, o que demanda uma logística pesada, com vários caminhões circulando abarrotados de minério. “A gente está falando de garimpo industrial, máquinas de grande porte, centenas de tratores e britadores”.
Só que não bastava saber da exploração ilegal, até porque esse tipo de atividade clandestina é comum na região. O repórter precisava de um documento que comprovasse a história. As fontes não entregaram o caminho tão facilmente, pois elas também precisam lidar com o risco de se expor, ainda que seja em off. Algumas informações, porém, estavam disponíveis publicamente no site da Autoridade Portuária do Pará. No portal, foi possível acessar a agenda dos navios cargueiros e verificar informações como a data na qual o navio vai atracar, o tipo de minério que vai ser transportado, a quantidade e a data de partida.
#PraTodosVerem: Print mostra a agenda de atracações previstas para o período de 18 a 22 de abril no Porto de Vila do Conde.
“Isso era só uma indicação de navio, eu precisava saber qual era a empresa que estava mandando o minério para lá. Foram dois meses de apuração para chegar à empresa e a confirmação de onde estava vindo o minério informado”, contou.
O repórter solicitou as informações à companhia responsável pelos portos e aos representantes da Receita Federal que atuam dentro dos portos, mas ambos os órgãos se limitaram a dizer que as informações comerciais eram sigilosas. Como já tinha colhido alguns dados na agenda portuária, André Borges fez uma solicitação mais completa via Lei de Acesso à Informação (LAI). Requisitou à autoridade portuária os nomes das empresas responsáveis por entregar as cargas previstas na agenda, o volume correspondente a cada uma das empresas e o local de onde saíram as cargas. Não recebeu nenhuma resposta satisfatória.
Após perceber que as vias formais de informação não corroboraram para a realização da pauta, uma fonte decidiu enviar uma foto de um documento correspondente a uma dessas cargas chamado Documento Auxiliar de Nota Fiscal Eletrônica (DANFE). O documento fica sob a posse do caminhoneiro durante o transporte da carga. A nota fiscal oficial só é emitida quando o transporte é finalizado.
Na DANFE, há uma chave de acesso com 44 dígitos que permite consultar mais detalhes da nota fiscal no portal da Secretaria da Fazenda como o nome da empresa responsável pela carga, localização, quantidade e valor da carga.
Com essas informações, Borges constatou que o manganês extraído pela empresa CNB Minerações nunca saiu de Cavalcanti (GO) — o município apontado na nota, uma vez que a mina está inativa e já havia sido exaurida 20 anos atrás. A confirmação ocorreu após contato com a prefeitura de Cavalcanti, outras fontes e checagem de imagens locais pelo Google Maps. Questionada por e-mail, a Agência Nacional de Mineração, responsável pela fiscalização do setor, confirmou as informações e garantiu que tomaria providências.
No CruzaGrafos, é possível consultar, com o nome da empresa ou CNPJ, quem são os sócios da CNB e quais são as outras empresas conectadas a eles. Um dos sócios, por exemplo, é ligado a outra mineradora de manganês no Mato Grosso.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra os sócios da CNB e as relações com outras empresas.
Após a publicação da reportagem, a Vale se articulou para vender os seus direitos minerários sobre a área de Marabá. Como não cuidou da área, o que permitiu as invasões para exploração ilegal, a Vale tentou se livrar do passivo ambiental. A repercussão foi tamanha que provocou uma debandada de caminhões do local durante a madrugada, o que acabou chamando a atenção da Polícia Rodoviária Federal e terminando em apreensão das cargas. A maioria dos caminhoneiros abandonou os veículos no meio da estrada e se embrenhou no mato. Após o episódio, operações foram deflagradas pela Polícia Federal e a Agência Nacional de Mineração sob o olhar do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União.
Promiscuidade na indústria farmacêutica
Em reportagem publicada no dia 30 de maio, no The Intercept Brasil (TIB), a repórter Nayara Felizardo mostrou como os acordos de boas práticas, que deveriam limitar as relações entre médicos e a indústria farmacêutica, são facilmente ultrapassados.
Sob o título “A Festa do Alekito”, a matéria trouxe evidências de como centenas de médicos que participaram do 40º Congresso Brasileiro de Pediatria, em Natal (RN), foram favorecidos por uma festa regada a comida e bebida à vontade, com duas atrações musicais, promovida pela farmacêutica Mantecorp Farmasa. O objetivo, segundo a apuração, era promover o antialérgico Alektos.
Mas nem todos os médicos que participaram do evento sentiram-se confortáveis com a situação, o que os levou a denunciar o caso ao TIB. “O ponto de partida da investigação foram alguns pediatras que participaram do congresso e que se incomodaram com o assédio abusivo das farmacêuticas aos profissionais, bem como com essa relação questionável com a Sociedade Brasileira de Pediatria”, nos contou Felizardo.
A repórter entrevistou três médicos, sendo que dois toparam se identificar. Além dos depoimentos, ela fez buscas sobre detalhes da festa. O ponto de partida foi a página do evento, na qual se pode verificar a programação e o espaço ocupado pelas farmacêuticas que financiaram o congresso. Os patrocinadores foram divididos nas seguintes categorias: Platina, na qual a Mantecorp está inserida, Ouro e Prata.
“Em seguida, observei quem eram os profissionais que estavam participando dos simpósios satélites, que, segundo médicos com quem conversei, são espaços comuns na programação dos congressos, destinados para farmacêuticas divulgarem informações de seu interesse”.
Para entender a relação dos palestrantes com as empresas, a repórter fez a seguinte pesquisa no Google: nome do profissional + nome da empresa. Matérias em sites de notícia e das empresas e pesquisas científicas comprovaram a relação.
Na reportagem, Felizardo revelou fotos e vídeos compartilhados pelos próprios médicos, o que confirma a estratégia da empresa em promover o antialérgico. Os pediatras posaram para fotos com o mascote da festa apelidado de Alekito e fizeram agradecimentos públicos à farmacêutica.
Para encontrar as publicações nas redes sociais dos pediatras, a repórter contou com a colaboração das fontes que participaram do congresso. “Foram elas quem me enviaram prints, vídeos e links de postagens nas quais ficava evidente o conflito de interesse entre a indústria farmacêutica e os profissionais. Também fiz buscas pela hashtag #mantecorpfarmasa, que foi usada em fotos postadas por médicos no dia da festa promovida pela farmacêutica”, completou.
Em consulta ao CruzaGrafos, é possível verificar quem são os sócios da farmacêutica e as relações com outras empresas do ramo. Algumas dessas companhias respondem a autos de infração no Ibama.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as empresas ligadas aos sócios da Mantecorp.
Após a publicação da reportagem, Nayara Felizardo recebeu mais informações sobre o que ocorreu no congresso. Fotos e prints de publicações nas redes sociais mostraram outras situações em que os médicos receberam mimos, almoços e lanches das patrocinadoras do evento. Novas denúncias envolvendo conflitos de interesse entre farmacêuticas e médicos ou entidades médicas também chegaram ao conhecimento da repórter.
Dica da Semana
O repórter Lucas Neiva, do Congresso em Foco, publicou recentemente uma reportagem que mostrou como internautas se articulam para divulgar peças de desinformação em favor de Bolsonaro. A organização ocorre por meio de imageboard, também conhecido como chan, que é um fórum anônimo de discussão na internet. Entre os assuntos mais comentados nas abas políticas estão ataques a movimentos sociais, propaganda de extrema-direita e conteúdos racistas e antissemitas.
Neiva explica que os canais de imageboard existem tanto na surface web, que são os mais movimentados onde as páginas indexadas da internet estão disponíveis aos usuários, quanto na deep web. Para acessá-los é importante estar conectado a uma rede segura, como a VPN, ou usar aplicativos gratuitos de segurança como o Tor. O objetivo é evitar tentativas de invasão a sua máquina ou que a sua localização seja descoberta. O repórter também orienta a não abrir links que não conheça e a entrar nos canais apenas como observador, sem interagir com os usuários. “[A interação] pode abrir uma brecha na sua segurança e comprometer a credibilidade da sua matéria dependendo de como for essa interação”, alertou.
Quando algum chan fica muito visado, como foi o caso do 1500chan abordado na reportagem, a interface é substituída por uma caravela, chamada pelos usuários de “máscara de chumbo”, sugerindo que o site está fora do ar. Uma sugestão para burlar essa máscara é abrir o site no modo leitura.
Outra dica do repórter é se atentar à linguagem utilizada pelos usuários, chamada chanspeak. Pode levar algum tempo até você entender os termos. As principais discussões ocorrem nos links com final “/p” e “/pol”. Exemplo: nomedapágina.org/p.
Após a publicação da reportagem, Lucas Neiva sofreu ameaças de morte e teve dados pessoais vazados, o que demonstra o risco desse tipo de cobertura. Uma das editoras do Congresso em Foco também sofreu ameaças e ofensas de cunho sexual por conta da reportagem. Então, a última dica, mas não menos importante, é fechar as suas redes sociais e evitar que dados sensíveis estejam disponíveis na internet.
“Depois de fazer a apuração para uma matéria que vai envolver os chans é importante você estar pronto para uma retaliação. Não sou o primeiro, outros jornalistas já foram retaliados e existem precauções que precisam ser tomadas como fechar as redes, guardar captura de tela do que foi dito sobre você, registrar boletim de ocorrência e tornar pública a retaliação que sofreu”, finalizou. No entanto, é importante que, ao tornar pública essa retaliação, você tenha o cuidado de não dar voz e espaço ao que diz o agressor para que a vítima não seja revitimizada e o agressor não atinja seu objetivo de proliferar a ofensa.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
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