#34 | O alto risco das barragens no Brasil e conflito de interesses sob investigação
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, tudo bem?
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, vamos te mostrar como um jornalista de dados identificou o número de pessoas que estão vivendo perto de barragens de risco no Brasil. Também abordaremos uma investigação que identificou conflito de interesses na Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul.
Na dica da semana, descubra uma ferramenta do Google que ajuda a pesquisar anúncios eleitorais e os valores gastos com as campanhas políticas em plataformas digitais.
Você já se inscreveu no 17º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo? O evento acontece de 3 a 7 de agosto em São Paulo. Nos dois primeiros dias (3 e 4), ocorre a parte on-line e gratuita do evento. A versão presencial e paga é de 5 a 7 de agosto, na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). O último dia do Congresso será dedicado à quarta edição do Domingo de Dados, com investigações e técnicas de jornalismo de dados. O painel sobre o projeto CruzaGrafos será no dia 5. Saiba mais detalhes aqui.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Boa leitura!
Vivendo sob risco
O resgate e aprimoramento de uma pauta que estava adormecida fazia algum tempo no bom e velho banco de pautas da redação jogou luz sobre uma situação de descaso e insegurança vivida por pelo menos 1 milhão de brasileiros. Esse é o número de pessoas que vivem perto de barragens potencialmente perigosas no Brasil.
Para chegar a essa conclusão, o jornalista de dados Rodrigo Menegat precisou fazer uso de algumas técnicas como a linguagem de programação Python. A reportagem “Brasil tem 1 milhão vivendo perto de barragens de risco” foi publicada em 29 de abril na DW Brasil. “A ideia surgiu ao revisitar pautas antigas e tentar tirá-las do papel”, explicou Menegat.
A análise foi feita com dados extraídos do Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB) disponíveis neste link. A planilha em formato CSV usada na análise também está disponível no GitHub (plataforma de hospedagem de código-fonte e arquivos) da DW.
O jornalista cruzou os dados sobre barragens com a Grade Estatística do IBGE, que contém informações sobre a distribuição da população no território brasileiro. “Eles estimam quantas pessoas moram em unidades super granulares. Você tem vários quadradinhos de 200x200m e de 1x1 km em todo o território nacional. Então, é possível saber exatamente quantas pessoas moravam em cada um deles, pelo menos em 2010. É um dado um pouco desatualizado”, contou Menegat.
Para fazer a triagem de barragens perigosas, Menegat usou como critério a classificação mais alta para as categorias de “risco” e “dano potencial” no relatório de barragens do SNISB. O jornalista explica que a categoria de “risco” envolve questões sobre a manutenção da barragem, se ela tem documentação adequada e se houve fiscalização. Já a categoria que classifica o “dano potencial” leva em conta a quantidade de pessoas que serão afetadas e de que forma, além dos impactos econômicos.
#PraTodosVerem: Baixamos uma planilha atualizada do SNISB e a abrimos no Google Sheets para mostrar as categorias de risco e dano potencial usadas na análise.
Após fazer a seleção dos dados e conversar com especialistas no assunto, o jornalista definiu o caminho que faria para identificar o número de pessoas que vivem em situação de risco.
“Teoricamente, você deveria usar como base para o cálculo a área que está a jusante da barragem (o sentido da correnteza em um curso de água) que seria atingida diretamente pelo fluxo de água. Só que não tínhamos essa informação. Então, preferimos usar uma medida mais conservadora, porque 1 km é muito pouco, subestima a quantidade de pessoas que serão afetadas em uma eventual ruptura”, explicou.
“Traçamos um raio de 1 km em volta de cada barragem no mapa e consideramos todos os quadradinhos do IBGE que encostam nessa área. Sempre que esse quadradinho interceptava o raio, eu computava as pessoas que moravam no quadrado", completou.
Após definir os critérios, o repórter usou o pacote Geopandas (uma biblioteca que facilita o trabalho com dados geoespaciais em Python) para traçar o raio de 1 km ao redor de sua localização. De acordo com a metodologia descrita no repositório, no GitHub, que também disponibiliza os códigos, foi calculada a interseção entre esses raios e os polígonos da grade estatística do IBGE.
Menegat também fez um trabalho de pesquisa para entender as questões que envolvem as barragens. Ele leu os relatórios anuais da Agência Nacional de Águas, que dispõem de informações detalhadas sobre os acidentes envolvendo as barragens e da evolução do panorama regulatório. O levantamento do número de acidentes, inclusive, veio a partir desses relatórios periódicos.
A produção da reportagem contou ainda com dados compilados pelos pesquisadores Mariano Andrade da Silva e Eliane Lima e Silva, da Universidade de Brasília e da Fiocruz, respectivamente, sobre segurança de barragens e os riscos potenciais à saúde pública; um conjunto de dados sobre barragens de rejeitos da Agência Nacional de Mineração (ANM); e a pesquisa de informações básicas municipais feita pelo IBGE em 2020.
Um negócio em família
Um e-mail que chegou na caixa do Grupo de Investigação da Zero Hora chamou a atenção do repórter Carlos Rollsing. Alguém do outro lado entregava uma pista sobre suposto conflito de interesses na Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul. Mesmo sem os nomes dos envolvidos, no primeiro momento, o faro do repórter o fez apostar na pauta e denunciar a pasta por contratar um curso de capacitação para os professores coordenado pelo marido da diretora do Departamento Pedagógico.
A reportagem, publicada em 24 de maio, após três meses de apuração, revelou que a servidora Letícia Grigoletto contratou a Sociedade Educacional Monteiro Lobato como organização social (OS) ao custo inicial de R$ 2,7 milhões. O consultor educacional da OS e coordenador das aulas era o professor Márcio Machado — com quem mantém relação estável desde fevereiro de 2019. Segundo a apuração, Letícia assumiu a diretoria do departamento dois meses antes da assinatura do termo de fomento com a Monteiro Lobato. A diretora e seu companheiro chegaram a ministrar juntos parte de uma aula do curso de Letramento Digital.
“No começo, o processo foi bastante complicado porque a fonte tinha dicas importantes, mas não sabia o nome da organização que havia sido contratada para prestar o serviço. O contrato não estava publicado no Portal da Transparência. Sem o contrato e sem o nome da empresa, estava difícil de avançar na apuração e houve um momento em que pensei em desistir da pauta”, nos contou Rollsing .
Após alguma insistência na busca por informação, o repórter conseguiu, por meio de uma fonte, um parecer jurídico do Estado sobre a contratação. “Isso nos deu o histórico do processo e o nome correto da empresa que foi contratada. A partir disso, as coisas começaram a ficar mais sólidas”, completou.
O passo seguinte foi procurar o contrato ou possíveis aditivos no Diário Oficial do Estado. As palavras-chave usadas na busca foram o nome completo da servidora e a razão social da instituição contratada. Os resultados ajudaram a entender que, em determinado momento, ela tornou-se ordenadora de despesas da secretaria, o que possibilitou que demandasse o pagamento da instituição na qual seu marido trabalhava como consultor educacional.
Foi nas redes sociais que o repórter confirmou que a servidora e o professor têm um relacionamento estável. “Essas buscas foram importantes para demonstrar que havia uma união estável entre a servidora e o consultor. Foi isso que possibilitou mostrar o conflito de interesse do casal, um pelo setor público e outro pelo privado”, pontuou.
Rollsing também recorreu à Lei de Acesso à Informação (LAI) para obter algumas provas documentais para a sua investigação. Ele solicitou o termo de fomento assinado entre a secretaria e a instituição contratada, o histórico de pagamentos efetuados à instituição e o número de professores que participaram do curso. “Isso já estava evidente pelos levantamentos que fizemos, mas os números da LAI vieram a corroborar”.
Pela LAI, a secretaria informou que o curso foi contratado para capacitar 60 mil professores da rede estadual de educação, só que menos de 20 mil professores assistiram às aulas. “Houve uma importante subutilização da contratação, com dinheiro público”.
O repórter não precisou entrar com recurso para receber a resposta via LAI, mas disse que a secretaria extrapolou o prazo de 30 dias de resposta. “Quando vários dias já tinham corrido após o prazo máximo previsto na lei para resposta, tive de acionar um setor do governo estadual que faz o gerenciamento da LAI de forma geral”. Depois de acionar a Subchefia de Ética, Controle Público e Transparência, obteve as respostas.
Após a publicação da reportagem, o Ministério Público de Contas solicitou fiscalização sobre o termo assinado entre a secretaria e a OS. O Ministério Público do Estado instaurou uma notícia de fato para apurar a denúncia. Outra reportagem publicada na sequência denunciou que mais uma empresa ligada ao companheiro da servidora também foi subcontratada para atuar no curso de formação. Neste caso, Márcio Machado não era apenas consultor, mas sócio. O repórter encontrou a informação sobre a segunda empresa na descrição de uma das videoaulas publicadas no YouTube.
No CruzaGrafos é possível verificar que um dos sócios da Sociedade Educacional Monteiro Lobato é Bruno Eizerik, eleito deputado federal na condição de suplente pelo DEM, hoje União Brasil (UB). Em agosto de 2021, ele assumiu a presidência da Federação Nacional das Escolas Particulares. A mesma busca pode ser feita no site da Receita Federal para verificar se houve alguma mudança no quadro societário da empresa.
PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra alguns dos sócios da Sociedade Educacional Monteiro Lobato.
Dica da Semana
Após aderir ao Programa de Enfrentamento à Desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Google assumiu o compromisso de investir em ferramentas de combate à desinformação nas eleições. Uma delas, que pode te ajudar nas investigações eleitorais, é o Relatório de Transparência de Anúncios Políticos, no qual é possível pesquisar as propagandas que foram pagas por anunciantes eleitorais e verificados exibidos nas redes de pesquisa e Display, no YouTube e no DV360.
Alguns filtros facilitam a busca. Você pode pesquisar por anúncio ou anunciante, delimitar horário ou formato da publicação como texto, vídeo ou gráfico. É possível selecionar o número de visualizações e o valor investido. Se você clicar na opção “mais recentes” pode organizar os anúncios em ordem crescente ou decrescente a partir do valor gasto ou do número de exibições.
Na busca pelo valor mais alto foi possível verificar, por exemplo, que a propaganda mais cara pertence à campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL). Segundo a plataforma, o Partido Liberal investiu mais de R$ 90 mil em um vídeo de 30 segundos exibido nos dias 23 e 24 de julho no YouTube. O número de visualizações variou entre 9 mil e 10 mil. Os estados selecionados para exibir este anúncio foram: Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Maranhão, Bahia e Piauí.
Outra opção é fazer o download de um conjunto de planilhas em formato CSV com as informações dos anúncios eleitorais que apareceram no serviço.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
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