#35 | A epidemia dos mercadinhos OXXO e o ouro ilegal usado pelas Big Techs
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, como vai? Espero que esteja bem!
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. A 35ª publicação demorou um pouco para sair, pois trazemos novidades! No último mês, como vocês sabem, estivemos envolvidos com o 17º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji, evento em que também tivemos o prazer de conhecer alguns de vocês pessoalmente.
Além disso, passamos as últimas semanas testando a nova versão do CruzaGrafos que está quase saindo do forno. O desenvolvimento contou com a Brasil.IO, do programador e ativista de software livre Álvaro Justen. A novidade é a inclusão de dados cadastrais dos candidatos que concorrem ao pleito de 2022; da lista de bens declarados pelos candidatos nas eleições de 2014, 2018, 2020 e 2022; e de dados mais completos sobre todas as empresas do Brasil e seus sócios, com links para endereços no Google Maps, contratos e pagamentos federais com o poder público no Portal da Transparência e processos judiciais de interesse público cadastrados no Publique-se.
As bases de dados públicos que já faziam parte da ferramenta também foram atualizadas (Receita Federal, TSE e Ibama). A nova versão estará oficialmente no ar a partir do dia 5 de setembro.
Na edição de hoje você vai conferir o que está por trás da OXXO, rede de mercados que tem se multiplicado rapidamente em São Paulo, e uma investigação que revelou o caminho percorrido pelo ouro ilegal até a Apple, Microsoft, Amazon e Google.
Na dica da semana, mostramos o Querido Diário, plataforma de código aberto da Open Knowledge Brasil que disponibiliza de forma rápida e acessível os diários oficiais de vários municípios brasileiros.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
Boa leitura!
O lado B da rede de mercados OXXO
Os caminhos para se contar uma boa história e desenrolar os nós que levam à ponta do novelo são muitos como já mostramos aqui na Investigadora. Podem partir de uma denúncia, de uma dica da fonte, documentos públicos, rastreamento por imagens de satélite e tantas outras possibilidades.
E uma delas é a pesquisa em profundidade. Estudar o histórico de uma empresa, desvendar a sua origem, entender a sua estratégia de negócio para dominar um nicho de mercado e expor os impactos que a chegada dela pode provocar na qualidade de vida das pessoas foi o método usado pela repórter especialista em saúde Maíra Mathias.
Na reportagem “O que está por trás da multiplicação das OXXO”, publicada no site O Joio e O Trigo, em 28 de abril, Maíra revelou as raízes e as relações da rede de mercados que tem contribuído para a disseminação dos alimentos ultraprocessados, o que vem provocando um estrago na alimentação mexicana, e que agora chegou ao Brasil.
A primeira loja foi aberta em dezembro de 2020 em Campinas, no interior do estado de São Paulo. Em seguida, expandiu para Jundiaí, São Paulo, Osasco e São Bernardo do Campo. Em 15 meses, segundo a apuração, foram inaugurados mais de cem mercadinhos. As lojas de pequeno porte que vendem comida, produtos de higiene e limpeza estão por todo lado na capital paulista e são motivo de piadas na internet pela rapidez com que se multiplicam. Em menos de cinco minutos de caminhada pelas ruas da região central de São Paulo entendi o porquê.
“O ponto de partida da reportagem foi, de fato, a multiplicação dessas lojas por São Paulo. Aconteceu muito rápido, e de forma ostensiva. Parte da redação do Joio já estava familiarizada com a OXXO por conta da presença massiva no México, país de origem da marca. E a gente tem falado há bastante tempo sobre os riscos de que o Brasil passe por um processo semelhante ao do México”, contou Maíra.
Vou dar só um briefing do que é a história dessa empresa, mas os detalhes você confere na reportagem. A rede de mercados OXXO, que teve sua primeira loja inaugurada em 1978, em Monterrey, pertence à Fomento Económico Mexicano (Femsa) que, segundo a reportagem, se destacou como a maior engarrafadora da Coca-Cola no mundo. Hoje, já são mais de 20 mil unidades espalhadas pela América Latina.
A reportagem desvenda o projeto de expansão da empresa e mostra os acordos milionários que estão sendo fechados para concretizar o plano, como a parceria com a Raízen — uma das maiores distribuidoras de combustíveis do Brasil. No braço comercial, a Femsa atua com redes de farmácia, combustíveis e as lojas OXXO.
“[No México], a comida está por todas as partes. A boa, sim, maravilhosa, com muitos elementos frescos e vibrantes. Mas especialmente a ruim. Muito ultraprocessado comercializado em quiosques, mercadinhos, bodegas, farmácias, hipermercados – e a OXXO não é figurante nessa história”, explica.
No CruzaGrafos, é possível identificar a Femsa no Brasil, quem são seus sócios e as relações com outras empresas. Algumas delas, inclusive, respondem a autos de infração no Ibama.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as relações empresariais da Femsa no Brasil
Para compreender as relações que envolvem a rede de mercados, a repórter fez uma busca de reportagens que saíram tanto na imprensa brasileira quanto na mexicana, sobre a Femsa e a OXXO, nos últimos 10 anos. Ela também pesquisou os relatórios anuais disponíveis nos sites das empresas em todos os países nos quais estão presentes e ouviu algumas conferências entre os acionistas.
Para entender as estratégias de marketing e mercado, como o conceito de “varejo de proximidade” usado pela Femsa, Maíra também estudou o assunto, consultou o ranking da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) e buscou entender como outras grandes empresas do segmento estão fazendo movimentos parecidos. Além disso, a repórter leu muito sobre ambiente alimentar e buscou os indicadores de saúde em Campinas — cidade escolhida como ponto de partida para a expansão da rede no Brasil.
“Uma coisa fundamental na apuração foi ter batido perna em Campinas. Me chamou muita atenção o fluxo baixíssimo de clientes nas lojas do Centro da cidade, fui a algumas em diferentes horários e conversei bastante com comerciantes do entorno”, contou.
Um estudo de uma pesquisadora mexicana sobre a compra de alimentos ultraprocessados no México também serviu de base para a apuração. “Tudo isso tem a ver com um processo mais geral de empobrecimento da população que torna os ultraprocessados mais acessíveis do que os alimentos in natura, empurrando os indicadores de saúde da população mexicana lá para baixo”, contextualiza a repórter.
A reportagem que levou cerca de um mês para ser produzida foi uma das mais lidas na carreira de Maíra, embora não tenha sido a mais complexa de se fazer. Ela acredita que a “curiosidade em relação a uma loja que passou a colonizar o cotidiano das pessoas” despertou a atenção.
O caminho do ouro ilegal fornecido às Big Techs
Investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal foram o ponto de partida para a reportagem que revelou com exclusividade que as gigantes da tecnologia Apple, Google, Microsoft e Amazon usaram ouro ilegal das terras indígenas brasileiras para produzir os seus produtos. A matéria foi publicada pela Repórter Brasil, em 25 de julho. O acesso aos inquéritos policiais que levaram a operações contra o garimpo ilegal, como a “Terra Desolata”, foi um estímulo para o repórter investigativo Daniel Camargos ir além. As editoras Mariana Della Barba e Gisele Lobato colaboraram com a apuração.
Os órgãos investigadores haviam descoberto que a Chimet, uma refinadora de metais preciosos italiana, comprou ouro extraído ilegalmente de territórios indígenas brasileiros. O repórter teve acesso aos inquéritos por meio de uma fonte e leu mais de oito mil páginas para compreender as transações financeiras do ouro. Ele também foi presencialmente à região do Pará onde estava ocorrendo o garimpo ilegal, conversou com autoridades ligadas à investigação e leu reportagens já publicadas sobre o assunto.
Após mapear o trabalho feito pela polícia, Daniel percebeu que ainda faltava responder uma pergunta: “A Chimet é uma refinadora de ouro italiana, mas para quem ela refina esse ouro?”. O questionamento levou o repórter a abrir um caminho ainda não percorrido pela investigação.
Daniel fez buscas cruzadas no Google com o nome da Chimet e de outras empresas. Exemplo: nome da empresa + ouro em português, italiano e inglês + nome de empresas italianas, como Fiat e Magnet Marelli. Em uma dessas buscas, nas últimas páginas do buscador, encontrou um relatório da Canon — fabricante de máquinas fotográficas — informando que a Chimet era uma de suas fornecedoras.
A partir desse relatório, ele observou que havia instituições que “certificam as refinadoras” e “têm como objetivo garantir maior transparência ao setor minerário” nos Estados Unidos e no Reino Unido. A RMI (Responsible Minerals Initiative), por exemplo, credita as refinadoras que fornecem ouro para as empresas que estão listadas na bolsa de valores dos Estados Unidos.
“Comecei a fazer uma busca pelos relatórios de cada empresa e ver quem eram os fornecedores. Foquei nas quatro empresas mais valiosas do mundo”, contou Daniel. “Só que, nesse meio tempo, descobri pela lista que tinha uma brasileira, a Marsam, que eu já conhecia de outras reportagens e sabia da ligação da empresa com a Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários FD’Gold”, completou.
O repórter, então, usou o CruzaGrafos para entender quais eram as relações dessas empresas e quem eram os seus sócios. As informações foram confirmadas por meio da base de dados da Receita Federal, do TSE e do Ibama. Buscas no banco de dados da Agência Nacional da Mineração também auxiliaram a pesquisa. “Para esse tipo de trabalho, o CruzaGrafos é fundamental, usei bastante”, comentou.
Nessas buscas, Daniel encontrou o nome de Dirceu Frederico Sobrinho, fundador da FD’Gold que, além de presidente da Associação Nacional dos Produtores de Ouro (Anoro), segundo a apuração, é um lobista que já esteve com o vice-presidente Hamilton Mourão e com ministros defendendo a exploração mineral em terras indígenas. Além disso, Sobrinho já foi sócio da Marsam, hoje comandada por sua filha.
No CruzaGrafos, é possível verificar que Sobrinho foi candidato a 1º suplente pelo PSDB no Senado, em 2018, quando declarou pouco mais de R$ 20 milhões em bens. A informação também está na matéria.
#PraTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as relações societárias de Dirceu Frederico Sobrinho, detalhes de sua candidatura como suplente em 2018 e os bens declarados ao TSE
O repórter acessou ainda as listas dos fornecedores das Big Techs no site da Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (Securities and Exchange Commission, ou SEC, na sigla em inglês). Entre centenas de refinadoras que constam no relatório, foi possível encontrar a brasileira e a italiana. Outro caminho, sugeriu Daniel, é fazer a busca pelo nome da empresa + conflict mineral report no buscador do Google. Desta forma, é possível acessar os relatórios que são enviados para a SEC nas páginas das próprias empresas.
“Em seguida, peguei a confirmação disso tudo, conversei com a RMI, SEC, com uma parceira delas na Inglaterra, Marsam, Chimet e as grandes: Apple, Google, Microsoft e Amazon”, explicou.
Nenhuma das empresas desmentiu as informações apuradas por Daniel. Das quatro big techs, apenas a Apple tomou uma atitude após ser questionada pela reportagem e removeu a Marsam da lista de fornecedores.
“A matéria também traz um questionamento: por que a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA não considera o Brasil uma área de conflito minerário?”
Dica da Semana
Você já ouviu falar no Querido Diário? O projeto de código aberto da Open Knowledge Brasil faz uso da tecnologia para libertar as informações publicadas nos diários oficiais dos municípios brasileiros, que estão limitados a PDFs nem sempre acessíveis. Embora o projeto já estivesse sendo desenvolvido desde 2018, sua plataforma oficial foi lançada em julho de 2021. Financiamentos como o promovido pela ILDA contribuíram para desenvolver a API aberta do projeto.
Na plataforma, você pode fazer buscas por meio de palavras-chave como, por exemplo, licitações e contratos, por municípios e datas. Cada município tem um nível de acesso. O projeto disponibiliza os documentos de 33 municípios na própria ferramenta. Você também encontra as fontes de pesquisa dos diários oficiais de 2.420 municípios.
O objetivo do projeto é alcançar os mais de 5 mil municípios brasileiros. “É uma iniciativa muito ambiciosa dada a diversidade de desafios e barreiras para se acessar esses dados, desde a falta de padronização até a escassez de recursos de tecnologias que muitos municípios brasileiros possuem para manterem informações públicas acessíveis na internet”, diz o projeto.
Se você trabalha com programação, pode contribuir para o desenvolvimento do código e ajudar a melhorar os níveis de acesso aos documentos. A documentação está disponível no próprio site.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
Para ler as edições passadas da Investigadora, clique aqui.
Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas sempre indicamos que você confira na Receita o CNPJ porque os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização, e veja na metodologia do CruzaGrafos como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
O CruzaGrafos está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
O que você achou desta edição da Investigadora?
Ótima • Boa • Regular • Ruim
>> Divulgue a Investigadora: encaminhe a newsletter para seus amigos e compartilhe os conteúdos nas suas redes sociais.
Aqui no Rio tem chegado o tal mercado Swift, que foca em carne e congelados. Vou testar cruzar os dados deles também (sou apenas um curioso kkkk). Trabalho sensacional!!