#36 | O impacto aquático da destruição na Amazônia e o sofrido caminho do aborto legal
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, como vai? Espero que esteja bem!
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje eu te convido a mergulhar nas águas da Amazônia e a refletir sobre a cobertura do impacto provocado pela destruição ambiental na área submersa. O projeto que vamos mostrar não só colocou o assunto em pauta como também se tornou fonte de informação sobre o tema.
A segunda reportagem que vamos abordar revela outro problema pouco debatido na imprensa, mas que dificulta a vida das mulheres que tentam acessar o aborto autorizado por lei no sistema público de saúde.
Na dica da semana, confira uma ferramenta que te permite acessar de forma fácil e rápida o desempenho dos presidenciáveis em todos os estados brasileiros nas últimas eleições.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
A ferramenta está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Vale lembrar que as informações disponibilizadas pelo CruzaGrafos são públicas, mas o trabalho de curadoria, seleção, limpeza, cruzamento, estudo de relações de poder, diferentes tipos de download, descrição e pesquisa de exemplos é feito pela equipe da Abraji e Brasil.IO. Dar crédito às organizações é importante para a manutenção deste trabalho e para mostrar a outros colegas que a ferramenta é útil.
Então, se você usar a ferramenta como referência para sua reportagem, não esqueça de citar que “a informação foi obtida em uma pesquisa no projeto CruzaGrafos, da Abraji e Brasil.IO, que mostra as principais informações cruzadas da base de dados original”.
Confira as informações mais recentes do projeto aqui.
Boa leitura!
Destruição para além da terra firme
Desconfortável com a falta de cobertura jornalística sobre o impacto da destruição das florestas e de outras intervenções humanas nas bacias hidrográficas, a equipe da Ambiental Media, uma startup de jornalismo científico focada em realizar investigações ancoradas na ciência e nos dados, desenvolveu o projeto Aquazônia — A Floresta Água, publicado em 5 de maio.
O texto é de Ronaldo Ribeiro, Letícia Klein e Kevin Damasio, os mapas foram desenvolvidos por Laura Kurtzberg e a coordenação do projeto é de Thiago Medaglia, que também é fundador da Ambiental — com quem conversamos.
Além de produzir a reportagem, a equipe desenvolveu um índice para medir os impactos da atividade humana nos ecossistemas aquáticos da Bacia Hidrográfica Amazônica. Para isso, a bióloga e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Cecília Gontijo Leal, foi incorporada ao time. O projeto contou com financiamento do Instituto Serrapilheira.
O Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA), desenvolvido pela equipe, detectou que um quinto das microbacias hidrográficas da Amazônia brasileira estão significativamente impactadas.
Na reportagem, você pode explorar os impactos causados pelo garimpo, mineração, hidrelétricas e mudanças climáticas, por exemplo, além de pesquisar as áreas afetadas por meio de um mapa interativo. Se for usar o material como fonte, não esqueça de dar os devidos créditos, ok?
#ParaTodosVerem: Print mostra o mapa do Índice de Impacto nas Águas da Amazônia com três tipos de impactos selecionados: hidrelétricas, área coberta por garimpo e área coberta por mineração
Thiago Medaglia deixa claro que a ferramenta não tem a pretensão de alçar a precisão dos níveis acadêmicos, pois o rigor metodológico exigido em publicações científicas não é compatível com a atual disponibilidade de dados relativos ao tema na Amazônia.
"Em se tratando de bases de dados sobre água na Amazônia, existem lacunas temáticas e geográficas significativas, que são obstáculos ao desenvolvimento de um índice feito por cientistas. O que fizemos foi oferecer a melhor fotografia possível com os dados existentes por meio de um trabalho de jornalismo científico", explica.
A inquietação de querer abordar o tema água de uma maneira inovadora e que fosse atraente para as pessoas fez o grupo debater o assunto e focar na Amazônia. Definido o gancho, veio a pré-apuração para coletar as bases de dados e estudos existentes sobre a Bacia Amazônica. Em uma planilha, a equipe foi agregando as bases sobre alterações climáticas, hidrelétricas, estradas que cruzam com igarapés e rios, entre outras.
Um ponto importante do projeto foi a parceria com o financiador, que recebeu a proposta da Ambiental Media, compartilhou feedbacks sobre o conteúdo e contribuiu com o desenvolvimento da parte conceitual do projeto.
Se você acha que captar recursos para um projeto está fora do seu alcance, não se intimide. A dica de Thiago é: mete a cara e apresenta a proposta. A equipe também já recebeu “nãos” e viu nas negativas uma oportunidade de amadurecer os projetos ao longo das submissões, o que fez com o que as propostas fossem aprovadas no momento certo.
Thiago também chama a atenção para o hábito do jornalista de pensar que o jornalismo de dados está ligado apenas às bases públicas. Uma das bandeiras da startup é provocar o olhar para a ciência como fonte de informação.
“As fontes de estudos científicos, quando bem trabalhadas, podem ser agregadas às bases de dados públicas, e você pode cruzar essas informações”, sugeriu.
No caso do Aquazônia, a equipe usou dados obtidos em bases públicas e gratuitas como o Projeto Mapbiomas, na Rede Amazônica de Informação Socioambiental, na Agência Nacional de Águas e a partir de artigos científicos. Mais detalhes sobre as fontes e o cálculo feito para chegar ao índice podem ser acessados na metodologia do projeto.
E não podemos falar em ciência como fonte de dados sem entender seu funcionamento para comunicá-la de forma adequada, certo? Pensando nisso, o coordenador do projeto dá algumas dicas. Uma delas é tomar cuidado com as revistas científicas “predatórias” que não possuem critérios em suas publicações.
Uma das ferramentas que pode ajudar a verificar a qualidade das pesquisas é o site Retraction Watch, no qual é possível consultar se houve alguma retratação relacionada ao estudo que você está consultando.
“E aí é importante verificar qual é o tipo de retratação. Estudo bom também pode ter uma retratação pontual. Mas se houver retratação do estudo todo, tende a ser indicativo de um problema mais sério”.
E como verificar se a revista é confiável quando a publicação é voltada para um nicho muito específico? Aí vão mais algumas dicas. Verifique se a revista é membro de alguma associação relevante e quem são os membros do conselho editorial.
Consulte também o Journal Citation Reports, uma publicação anual que oferece informações sobre revistas científicas, incluindo o fator de impacto. Ele dá mais dicas em um curso gratuito no Knight Center.
Deslocamento dificulta aborto legal no Brasil
Em meio à edição pelo Ministério da Saúde de uma cartilha que traz informações sobre a conduta dos profissionais de saúde em relação a casos de abortamento e a discussão do aborto legal nos Estados Unidos, os repórteres Victor Farias e Patrícia Figueiredo publicaram um série de reportagens que põe luz sobre um dos muitos obstáculos enfrentados pelas mulheres: o deslocamento.
Embora os hospitais que oferecem serviços de ginecologia e obstetrícia devessem ter equipamento adequado e equipe treinada para realizar o aborto legal, muitas unidades de saúde ainda se recusam a prestar o atendimento.
Por isso, muitas mulheres precisam se deslocar por longas distâncias até uma unidade que ofereça a assistência. É importante lembrar que o aborto é permitido em três situações no Brasil: quando a gravidez é decorrente de estupro, se representa risco à vida da mulher e em caso de anencefalia fetal.
A reportagem “4 em cada 10 abortos legais no Brasil são feitos fora da cidade onde a mulher mora; pacientes percorreram mais de 1 mil km” foi publicada em 9 de junho pelo G1. Outras quatro matérias saíram na sequência.
O trabalho conta com recursos gráficos e vídeos. Para escrever o material, a dupla de repórteres mergulhou no tema e ouviu várias especialistas. Patrícia ficou encarregada de entrevistar as personagens da história.
O levantamento mostrou que quase 40% das mulheres que fizeram um aborto autorizado por lei precisaram se deslocar para outro município ou estado para acessar o procedimento. Histórias contadas sob a condição de anonimato mostram o drama que essas mulheres viveram ao percorrer vários quilômetros.
Mesmo sendo jornalista de dados e sabendo lidar com ferramentas mais complexas, como linguagem de programação, você pode enfrentar desafios para acessar algumas bases públicas. Foi o que aconteceu com o Victor ao buscar os dados no DataSUS.
“Não daria para acessar o recorte específico que eu fiz pelo Tabnet, teria que ser pelo Tabwin, e eu achei bem difícil. Então, acabei pedindo via Lei de Acesso à Informação (LAI)”, contou.
A metodologia dos dados utilizada para fazer a reportagem foi documentada no pé da matéria. No pedido de LAI, o repórter solicitou o número de mulheres que fizeram aspiração manual intrauterina (AMIU) ou curetagem com o código O04 — que identifica o aborto por razões médicas e legais.
No pedido, ele também solicitou o município de origem da paciente e o município onde o procedimento foi realizado. O pedido incluiu os três casos de aborto legal e o recorte de tempo foi de janeiro de 2021 a fevereiro de 2002.
Uma situação curiosa que aconteceu durante a apuração e serve de alerta para quem está trabalhando com dados é que um dos números enviados pelo Ministério da Saúde estava fora da curva, o que fez o repórter investigar se havia algum erro.
Segundo os dados obtidos via LAI, Magé, um município da região metropolitana do Rio de Janeiro, tinha a segunda maior quantidade de abortos legais no Brasil. “Achei estranho, porque não é uma cidade tão grande”, contou.
Os repórteres entraram em contato com o município e descobriram que a Secretaria Municipal de Saúde estava cadastrando aborto espontâneo e outros tipos de aborto como aborto legal. “A gente acabou não usando esses dados. Eles abriram uma auditoria interna para investigar o que aconteceu e corrigir as informações”.
Uma das pacientes ouvidas pela reportagem relatou que a equipe que a recebeu no Hospital das Clínicas de Uberlândia (HCU), ligado à Universidade Federal, não a atendeu de forma adequada. O hospital se posicionou sobre o caso e afirmou que não compactua com o mau procedimento.
Quando você se depara com algum órgão público ou empresa privada na sua apuração, pode checar no Portal da Transparência quais são os contratos ligados àquele ente investigado ou quem são seus fornecedores.
Fizemos uma pesquisa sobre o HCU como exemplo e identificamos seus fornecedores. Um deles, que atua com vestuário e limpeza, recebeu R$ 30 milhões em contratos com o governo federal nos últimos oito anos, o que não quer dizer que há alguma irregularidade. Aqui neste link tem mais detalhes de como pesquisar órgão público no Portal da Transparência.
#ParaTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra consulta sobre três fornecedores ligados ao HCU. Uma das empresas, de pequeno porte, é fornecedora da unidade hospitalar desde 2014.
Outro ponto que chamou a atenção dos repórteres é que os dados de aborto medicamentoso não são cadastrados no DataSUS, o que provoca defasagem nos dados.
“O aborto legal, em geral, usa o medicamento e mais a cirurgia. No Brasil não se faz tanto o procedimento só com o uso do medicamento, que é mais comum em gestações que não estão tão avançadas”.
Logo depois da publicação das reportagens, vieram à tona mais dois casos polêmicos. O da atriz Klara Castanho e o da menina de 11 anos que teve o aborto legal negado pela Justiça. “Acho que as matérias contribuíram para a discussão e trouxeram informações importantes para aquele momento”, concluiu Victor.
Dica da Semana
A Gabriela Caesar, jornalista e programadora, desenvolveu uma ferramenta muito útil para quem está cobrindo eleições. O Eleições no Brasil, que tem código aberto, possibilita comparar o desempenho dos presidenciáveis em cada um dos estados brasileiros.
A ferramenta é bem simples de usar e permite que você verifique o comportamento do eleitor ao votar para presidente, tanto no primeiro quanto no segundo turno, nas eleições de 2002, 2006, 2010, 2014 e 2018.
Além de checar como foi a votação por estado e os dados nacionais, é possível analisar como os brasileiros que vivem no exterior votaram em eleições anteriores.
#ParaTodosVerem: Print do site Eleições no Brasil mostra um exemplo de pesquisa pelo estado de Pernambuco
O projeto usa dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e foi desenvolvido para o curso de Jornalismo de Dados, Automação e Data Storytelling do Insper. Gabriela contou com a colaboração do colega de turma Thiago Araújo e dos professores Thiago Maranhão e Vinicius Sueiro.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
Para ler as edições passadas da Investigadora, clique aqui.
Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama. Mas sempre indicamos que você confira o CNPJ na Receita Federal, pois os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização. Veja na metodologia como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
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