#37 | O patrimônio da família Bolsonaro e a ascensão das igrejas evangélicas no Brasil
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, tudo bem?
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje você vai conferir um levantamento inédito sobre o crescimento dos templos evangélicos nas últimas três décadas no país. Confira também os bastidores da reportagem que expôs o patrimônio da família Bolsonaro e a aquisição de parte dos bens com dinheiro vivo.
Na dica da semana, aprenda a desenvolver mapas com uma ferramenta gratuita. As dicas são de uma professora que é referência no assunto.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
A ferramenta está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Vale lembrar que as informações disponibilizadas pelo CruzaGrafos são públicas, mas o trabalho de curadoria, seleção, limpeza, cruzamento, estudo de relações de poder, diferentes tipos de download (manual, pedidos de LAI, webscraping, OSINT), descrição e pesquisa de exemplos é feito pela equipe da Abraji e do Brasil.IO. Dar crédito às organizações é importante para a manutenção deste trabalho e para mostrar a outros colegas que a ferramenta é útil.
Se você usar a ferramenta como referência para sua reportagem, não esqueça de citar que “a informação foi obtida em uma pesquisa no projeto CruzaGrafos, da Abraji e do Brasil.IO, que mostra as principais informações cruzadas da base de dados original”.
Confira as informações mais recentes do projeto aqui.
Boa leitura!
Religião e poder andam juntos
Quem está por dentro da cobertura de eleições sabe que a disputa pelo eleitorado religioso se intensificou no pleito deste ano e que a pauta dos costumes tem camuflado o debate sobre políticas públicas e projetos de governo. Além de acompanhar o tema há alguns anos, a repórter Natália Portinari percebeu a necessidade de mapear as denominações religiosas no Brasil para compreender como tem se dado essa relação entre religião e poder.
Publicada entre os dias 18 e 21 de setembro em O Globo, a série de reportagens Salto Evangélico revelou que ao menos 21 igrejas evangélicas são abertas por dia no Brasil e a cada três igrejas evangélicas, uma foi inaugurada na última década. A produção também mostra como ocorreu esse avanço nos últimos 30 anos, apresenta os laços entre lideranças religiosas e parlamentares e o movimento que religiosos têm feito para ocupar cargos políticos. Além de Natália, com quem conversamos, a série conta com o trabalho dos repórteres Bernardo Mello, Eduardo Gonçalves, Jessica Marques e Marco Grillo.
O levantamento foi feito a partir dos dados coletados junto à Receita Federal pelo Brasil.IO — projeto que é nosso parceiro no CruzaGrafos e que tem por objetivo tornar os dados públicos mais acessíveis. Natália solicitou ao Álvaro Justen, que é responsável pelo Brasil.IO, a base de CNPJs de todas as igrejas do Brasil. Para fazer esse recorte, foi necessário selecionar todos estabelecimentos cadastrados na Receita Federal com o CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) “templo religioso”. Lembrando que no CruzaGrafos você pode pesquisar os sócios, endereços e mais informações de todas as igrejas e templos religiosos.
Natália e Bernardo usaram a linguagem de programação Python para trabalhar com a base que é bastante extensa. Por meio da biblioteca de software Pandas, criada para manipulação e análise de dados, os repórteres aplicaram filtros a fim de separar os dados por ano de abertura dos templos e denominação religiosa, e visualização por meio de gráficos.
#ParaTodosVerem: Print de um dos filtros feitos pela repórter para analisar os dados em Python.
Além disso, foi preciso padronizar os dados como, por exemplo, as denominações distintas que remetem à mesma igreja, e classificar os templos por tipo de denominação religiosa. Para isso, os repórteres consultaram especialistas e informações do último censo do IBGE.
Após limpar e padronizar a planilha é que “o trabalho começa”, pois é quando o repórter precisa explicar o fenômeno encontrado, aponta Natália. A base de CNPJs dos templos religiosos ainda foi cruzada com a base de população para verificar a proporção de igrejas nos estados e municípios.
#ParaTodosVerem: Print de tela mostra a ascensão das principais denominações religiosas em um gráfico de linhas.
Terminada a análise, que durou cerca de um mês, os repórteres partiram para as entrevistas e, a partir delas, puderam compreender algumas situações. Pastores esclareceram, por exemplo, que vários templos da mesma denominação religiosa podem estar usando um único CNPJ, o que indica que o crescimento de igrejas evangélicas pode ser ainda maior do que o indicado pela reportagem. “Provavelmente, esse número é muito maior. Mas já é um número interessante. Porque a base é substancial e revela alguma coisa sobre um fenômeno que está acontecendo”, avaliou Natália.
Ouvir as fontes também possibilitou que os repórteres entendessem a estratégia de crescimento e o padrão de organização de cada uma das denominações religiosas analisadas.
“Quando falamos em jornalismo de dados não podemos olhar para uma planilha, chegar ao resultado e publicar uma matéria falando apenas sobre o número encontrado, porque isso seria parar na metade do caminho. É preciso complementar essa base de dados com apuração”, defende Natália.
A repercussão da série de reportagens foi expressiva entre cientistas políticos e estudiosos do assunto que estavam carentes de dados como esse. O levantamento, na avaliação de Natália, pode apontar caminhos de pesquisa e ajudar a embasar outras reportagens e estudos sobre o tema.
Aquisição de patrimônio com dinheiro vivo
As últimas três décadas não foram marcadas apenas pela ascensão das igrejas evangélicas como mostrou o levantamento dos repórteres de O Globo. A família do presidente Jair Bolsonaro (PL) também ascendeu economicamente nesse período. No dia 30 de agosto, os jornalistas Thiago Herdy e Juliana Dal Piva publicaram uma reportagem que expôs o patrimônio da família Bolsonaro.
O levantamento patrimonial realizado pelos repórteres do UOL comprovou que o presidente, seus irmãos e filhos negociaram 107 imóveis, dos quais 51 foram adquiridos total ou parcialmente com dinheiro vivo. A compra de ao menos 25 bens acarretaram em investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro e do Distrito Federal.
Juliana Dal Piva investiga o patrimônio da família Bolsonaro há quatro anos. Ela nos contou que os primeiros dados vieram das investigações conduzidas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro sobre ilegalidades nas compras de imóveis feitas pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o filho 01 do presidente. A partir daí, Juliana passou a entrevistar diversas pessoas que começaram a mencionar outros membros da família cujo modus operandi era o mesmo de Flávio.
A reportagem, que chegou a ser retirada do ar por força de uma liminar expedida pela Justiça de Brasília, a pedido do próprio Flávio, compilou todos os dados apurados ao longo desses quatro anos que, segundo Juliana, estavam dispersos em outras matérias e autos de investigação contra Flávio e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). A censura foi derrubada por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Thiago e Juliana aprofundaram as investigações sobre o clã Bolsonaro em São Paulo. “Renovamos pedidos de pesquisa de bens de todos em cartórios e pedimos escrituras de compra e venda dos imóveis que desconhecemos. Depois, fizemos algumas viagens para ver os imóveis e entrevistar as pessoas envolvidas nas negociações”.
Os repórteres verificaram se existiam imóveis em nome de empresas de pessoas do núcleo familiar. Uma das fontes de pesquisa foi o site Registradores, serviço pago que permite fazer busca com o CPF da pessoa investigada. A pesquisa retorna o cartório no qual a pessoa tem o imóvel registrado. Parte das pesquisas foi feita por meio das Juntas Comerciais. Uma dica é que, diferente de outros estados, a pesquisa na Junta Comercial de São Paulo é gratuita. Juliana também fez pesquisas pelo Google e usou o CruzaGrafos.
#ParaTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as relações empresariais de Flávio Bolsonaro com outros membros da família.
Nos cartórios, ela solicitou certidões de ônus reais com o histórico de cada imóvel e as escrituras de compra e venda. Para ter acesso aos documentos no cartório, é preciso pagar uma taxa. Outra fonte de informação foram os processos judiciais reunidos ao longo dos quatro anos de apuração.
Juliana começou as investigações em parceria com Chico Otávio quando ainda trabalhava em O Globo. Neste ano, já no UOL, a repórter dividiu o trabalho com Thiago. “Para esse último material, foram pouco mais de sete meses. Mas o conhecimento reunido nesta reportagem inclui muito trabalho feito ao longo desses últimos quatro anos”, destacou.
Após a publicação da reportagem, Juliana precisou reforçar a segurança nas redes sociais. Ela disse que também evitou exposição desnecessária. Em alguns dos eventos de lançamento do seu livro “O Negócio do Jair”, Juliana foi acompanhada por seguranças.
“Infelizmente, não pude cobrir campanha de rua esse ano porque considerei inseguro devido a todos os últimos acontecimentos violentos. Agora, estamos trabalhando também para arquivar a queixa-crime que foi apresentada pelo senador Flávio Bolsonaro junto com o pedido de censura”, contou.
“No pedido, Flávio queria que fosse criminalizado o uso dos dados apresentados na denúncia contra ele sobre todas as compras que, segundo o MP-RJ, incluíram dinheiro ilegal repassado por antigos assessores”, completou.
Os dados aos quais Flávio Bolsonaro se refere, segundo Juliana, estão públicos há dois anos.
Dica da Semana
Se você leu a edição anterior, deve lembrar da reportagem Aquazônia, A Floresta Água, que abordou o impacto provocado pela destruição ambiental na área submersa da Amazônia. A equipe da Ambiental Media desenvolveu um índice para medir esses impactos e projetou os resultados em um mapa interativo.
Laura Kurtzberg, que é professora assistente na Florida International University e colaboradora da Ambiental Media, foi a responsável pelo desenvolvimento do índice e da visualização dos dados.
Em uma aula para o curso de Jornalismo de Dados Ambientais, da Escola de Dados, que está disponível no YouTube, ela ensina a personalizar mapas com o Mapbox — uma ferramenta gratuita.
No vídeo de pouco mais de 18 minutos de duração, Laura ensina a como publicar um mapa com várias camadas e editar as propriedades de acordo com os dados que você pretende trabalhar.
A professora apresenta três exemplos: um mapa de pontos de queimadas no Cerrado, um mapa de polígonos de desmatamento no Cerrado e um mapa de imagens de satélite de uma inundação perto de Manaus. Vale a pena conferir!
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
Para ler as edições passadas da Investigadora, clique aqui.
Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama. Mas sempre indicamos que você confira o CNPJ na Receita Federal, pois os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização. Veja na metodologia como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total já foram treinadas 122 pessoas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
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