#38 | Criação de gado em terra grilada e conflito de interesses em campanha presidencial
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá, como vai? Espero que esteja bem!
Meu nome é Schirlei Alves* e esta é mais uma edição da Investigadora. A propósito, esta é a última edição do ano e o fechamento de um ciclo para esta que vos escreve. Peguei o bastão do Eduardo Goulart de Andrade, que fez um trabalho brilhante no ano passado, e assumi a responsabilidade de produzir a Investigadora ao longo de 2022.
Encerro a minha participação feliz por ter compartilhado com vocês um pouquinho dessa paixão chamada jornalismo. Foi uma honra entrevistar tantos colegas talentosos e fazer parte deste time. Agradeço ao Reinaldo Chaves, coordenador de projetos da Abraji, e ao Álvaro Justen, desenvolvedor do CruzaGrafos, pela oportunidade e aprendizado.
Mas leitores, fiquem tranquilos, a newsletter volta no ano que vem! Quem quiser continuar acompanhando o meu trabalho pode ficar de olho nas reportagens que produzirei nos próximos meses para um projeto do DeltaFolha, na Folha de S.Paulo.
Chega de despedidas porque é hora de saborear as reportagens investigativas desta edição. Hoje, você vai conferir um levantamento inédito sobre o caminho percorrido pelo gado criado em terras griladas e transportado com roupagem de “legalidade” até os frigoríficos. Confira também uma reportagem que revelou conflito de interesses nas gravações da campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Na dica da semana, conheça uma ferramenta que te ajuda a identificar um Twitter bot, ou seja, um perfil no Twitter que não pertence a uma pessoa real, mas é controlado por algoritmos.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
A ferramenta está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Vale lembrar que as informações disponibilizadas pelo CruzaGrafos são públicas, mas o trabalho de curadoria, seleção, limpeza, cruzamento, estudo de relações de poder, diferentes tipos de download (manual, pedidos de LAI, webscraping, OSINT), descrição e pesquisa de exemplos é feito pela equipe da Abraji e do Brasil.IO. Dar crédito às organizações é importante para a manutenção deste trabalho e para mostrar a outros colegas que a ferramenta é útil.
Se você usar a ferramenta como referência para sua reportagem, não esqueça de citar que “a informação foi obtida em uma pesquisa no projeto CruzaGrafos, da Abraji e do Brasil.IO, que mostra as principais informações cruzadas da base de dados original”.
Confira as informações mais recentes do projeto aqui.
Boa leitura!
Carne na mesa, desmatamento na Amazônia
Allan de Abreu, repórter investigativo da Revista Piauí, que já nos brindou com suas matérias em outras edições, revelou na reportagem A lavagem da boiada, publicada em julho de 2022, como a indústria da carne impulsiona o desmatamento na Amazônia ao comprar gado de áreas griladas.
A imagem de suposta legalidade se dá por uma operação indireta, na qual o gado criado em áreas de proteção ambiental ou terras indígenas passa por uma fazenda que está dentro da lei antes de chegar aos frigoríficos.
Na reportagem, Allan destrincha o processo de grilagem e desmatamento. Em um levantamento inédito, aponta que, entre 2018 e 2021, mais de 91,3 mil animais saíram de terras públicas invadidas no Pará. Segundo a apuração, os animais abatidos geraram 22,8 mil toneladas de carne, o que daria para suprir a merenda dos alunos da rede pública municipal de São Paulo por 283 dias.
Chegar a esses dados não é uma tarefa fácil, até porque não há interesse político para que eles estejam disponíveis. A reportagem da Piauí contou, portanto, com a parceria do Center Climate Crime Analysis (CCCA) — ONG que estimula a aplicação da lei contra ações ilegais que agravam as mudanças climáticas e violam os direitos humanos; do Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) — consórcio internacional de jornalismo que investiga corrupção e crime organizado; e da Fiquem Sabendo — agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI).
Para fazer o levantamento, foi necessário cruzar informações de duas bases: a de Guias de Trânsito Animal (GTAs), usada para fazer o controle sanitário do gado; e a de Cadastro Ambiental Rural (CAR), na qual é feito o registro eletrônico de imóveis rurais. A técnica usada foi a de raspagem de dados, ou seja, extração de dados por meio de programação.
“O CAR não conversa com a GTA e isso é proposital. Existem projetos muito antigos para tentar unificar essas bases, mas, obviamente, isso não é feito porque ficaria mais fácil detectar a movimentação do gado nessas áreas griladas”, explicou Allan.
Embora o acesso à base completa demande conhecimento em programação, é possível fazer pesquisas individuais. Só que para fazer uma consulta na base do CAR, você vai precisar do CPF do dono da propriedade ou do próprio número do documento. E na base do GTA, a dificuldade é ainda maior, pois a única busca possível é pelo código da guia.
O repórter e as instituições parceiras também tentaram desvendar o caminho feito pela carne do frigorífico até o estabelecimento onde ela será comercializada. A base com essas informações, chamada DCPOA, está ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e é considerada sigilosa. Neste caso, não foi possível acessar a base via Lei de Acesso à Informação e nem por meio de técnicas de raspagem de dados.
“Se você tiver o código, é possível pesquisar [no site]. Mas não tem nenhum outro critério de acesso. Na prática, é uma base fechada. A gente tentou via LAI, mas eles dizem que os dados comerciais são dados sensíveis”, completou.
Após fazer uma triagem minuciosa na planilha com os dados levantados pelas bases do CAR e das GTAs, Allan escolheu os casos que seriam abordados na matéria. A partir daí, passou a pesquisar quem eram os donos das fazendas e quais eram os frigoríficos que recebiam a carne “lavada”. Uma das ferramentas usadas pelo repórter para pesquisar as ligações societárias foi o CruzaGrafos.
Uma das pesquisas viáveis que podemos citar como exemplo é pelo nome do empresário Neivar Zorthea, que aparece como proprietário da Fazenda Renascer no levantamento feito pelo repórter a partir das GTAs. Ao buscar o nome de Zorthea no CruzaGrafos, é possível verificar que ele é sócio de quatro empresas, entre elas uma geradora de energia elétrica.
#ParaTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as relações societárias do empresário Neivar Zorthea
As informações captadas a partir do levantamento de dados subsidiaram o trabalho de campo do repórter. Allan viajou até Novo Progresso, no Pará, onde ficou hospedado para fazer os deslocamentos até as terras griladas que estavam incluídas em sua pesquisa.
Por ser uma área bastante conflituosa, evitou se identificar quando não havia necessidade. Nas ocasiões em que foi questionado, porém, preferiu confirmar que era jornalista. Allan também evitou ficar mais do que o tempo necessário. Cinco dias foram suficientes para percorrer o trajeto definido. Uma instituição local apoiou na logística.
Após a publicação da reportagem, a JBS admitiu que tem dificuldade para rastrear os fornecedores indiretos do gado. A matéria também repercutiu para além das fronteiras brasileiras ao ser republicada pelo OCCRP. Um dos membros do CCCA, que colaborou com a raspagem de dados, também apresentou o trabalho em um congresso que ocorreu na Letônia.
Conflito de interesses na campanha de Bolsonaro
Uma reportagem publicada pela Folha de S.Paulo mostrou que o presidente Jair Bolsonaro gravou inserções para a sua campanha de 2022 em uma empresa de produção audiovisual que tem contratos com o governo federal. O possível conflito de interesses foi revelado pelos repórteres Constança Rezende e João Gabriel em 11 de outubro.
De acordo com a apuração, a empresa Aldeia Filmes, cujo dono é o publicitário Ricardo Martins, tem R$ 3,2 milhões em acordos com o governo federal — todos firmados durante a gestão de Bolsonaro.
O publicitário também é dono de outra empresa, a RM Filmes, que recebeu R$ 5,5 milhões do PL para fazer a campanha do atual presidente. Os repórteres descobriram que as empresas não possuem escritório próprio e que as atividades ocorrem em um espaço de coworking em Brasília.
Segundo Constança, esse era um tema que já estava sendo monitorado na redação da Folha desde que o DivulgaCand — site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — passou a ser abastecido com as informações das candidaturas de 2022. Os repórteres pesquisaram pelo CNPJ das empresas fornecedoras da campanha de Bolsonaro e buscaram mais detalhes no site da Receita Federal.
“Assim que nos deparamos com o CNPJ de uma empresa fornecedora de um serviço de campanha, o primeiro passo fundamental é ir no site da Receita Federal, que já está até salvo no meu favoritos. Lá tem dados importantes como os sócios das empresas, capital social, serviços que oferecem e endereço”, destacou Constança.
Outra consulta possível é pelo CruzaGrafos. Como o nome do empresário é muito comum e existem vários homônimos, sugiro que faça a busca pelo nome da empresa. Neste caso, procurei pela Aldeia Filmes e cheguei até Ricardo Martins. O grafo me mostrou que ele é sócio de seis empresas, entre elas a Aldeia e a RM, e indicou quem são os sócios ligados a essas empresas.
#ParaTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as empresas e os sócios ligados ao empresário Ricardo Martins
Daí em diante, contou a repórter, foi possível ramificar outras buscas. A informação de que Martins pagou R$ 10 mil para se tornar o único sócio de uma das empresas citadas na matéria, a RM Filmes, que foi contratada pelo PL para a campanha de Bolsonaro por R$ 5,5 milhões, partiu de documentos adquiridos por meio da Junta Comercial.
“Foi assim que vimos que o dono da empresa que forneceu serviços para a campanha do presidente [RM Filmes] era proprietário de uma outra [Aldeia Filmes], esta sim, com contratos junto ao governo federal”, explicou Constança.
Outras pesquisas também foram feitas em diários oficiais, no Jusbrasil, em redes sociais e no Portal da Transparência do governo federal. No CruzaGrafos, os dados do Portal da Transparência estão nas fichas de pessoas físicas e de pessoas jurídicas com um link direto para o portal. Então, se o CPF ou CNPJ tiver pagamentos, contratos, sanções e outras informações com o governo federal, será apresentado o link. Caso o CPF ou CNPJ não possua essas relações, o link mostrará que “a página não foi encontrada”.
Dica da Semana
Você já ouviu falar no Pegabot? Profissionais do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) e do Instituto Equidade & Tecnologia desenvolveram um script que possibilita verificar a probabilidade de uma conta do Twitter ser um bot, ou seja, uma conta controlada por um algoritmo. Segundo a plataforma, essas contas são programadas para realizar tarefas repetitivas como retuitar conteúdo a partir de uma palavra-chave ou responder a novos seguidores.
O acesso ao Pegabot é gratuito, basta escolher um perfil no Twitter e jogar o seu link no campo disponível para digitar. Ao solicitar a análise do perfil que você escolheu, a plataforma retornará um percentual que indica a chance deste perfil ser de uma pessoa real ou uma conta automatizada.
A ferramenta também permite identificar redes de bots e tornar as análises públicas mais fáceis junto a jornalistas, especialistas e organizações da sociedade civil.
Como exemplo, analisei um perfil bolsonarista chamado @patriotadapraia. De acordo com o Pegabot, a probabilidade desse perfil ser um robô no momento da análise era de 54%. O resultado leva em conta o perfil de usuário, a rede de seguidores e perfis seguidos, e a linguagem utilizada nos tuítes.
#ParaTodosVerem: Print mostra o resultado da análise do perfil @patriotadapraia no Pegabot
Se quiser, pode optar pela análise completa e averiguar todos os critérios levados em conta no cálculo.
#ParaTodosVerem: Print mostra análise completa do perfil @patriotadapraia
A análise detalhada verifica critérios como a semelhança do nome do usuário com o nome do perfil, o número de dígitos no nome do usuário, o comprimento do nome do perfil e do usuário, a descrição do perfil e o selo de verificação.
Redson Fernando, pesquisador de Democracia e Tecnologia no ITS Rio e um dos comunicadores por trás do Pegabot, nos explicou que a identificação de bots nas plataformas não é uma tarefa trivial e impõe uma série de desafios.
“Por isso, o objetivo principal do projeto não é dizer se um perfil é ou não bot, mas sim qualificar o debate público e aumentar o número de narrativas a respeito do tema com base nas análises de dados que produzimos”.
Fortaleça o trabalho de quem faz a Investigadora. Contribua com qualquer quantia. O pagamento pode ser feito via Pix, por meio da chave aleatória 61699d2c-28f7-4d90-b618-333a04f13e0a. É só copiar e colá-la. Também dá para usar o QR Code a seguir:
*Schirlei Alves é jornalista desde 2008. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agência Lupa, The Intercept Brasil, BBC News, O Joio e o Trigo e Portal Catarinas. Colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e trabalhou como repórter nos principais jornais da região Sul. Recebeu os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Atua com jornalismo investigativo sob a perspectiva dos direitos humanos e tem focado na especialização em jornalismo de dados.
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
Para ler as edições passadas da Investigadora, clique aqui.
Saiba mais sobre o CruzaGrafos
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser conferidos com outras fontes e mais informações. Além disso, o fato de uma pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama. Mas sempre indicamos que você confira o CNPJ na Receita Federal, pois os dados de uma empresa podem mudar mais rápido do que nossa atualização. Veja na metodologia como consultar os autos do Ibama de forma mais eficiente.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados. No total, já foram treinadas 122 pessoas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
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