#39 | O ministro sob suspeita e as atas secretas do governo Bolsonaro
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá!
A Investigadora volta à atividade, agora sob nova autoria. Sou Flávia Faria* e me junto ao supertime da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), vinda de uma temporada de oito anos na Folha de S.Paulo.
Nesta edição, contaremos os bastidores de duas séries de impacto.
A primeira delas é dos repórteres Daniel Weterman, Vinícius Valfré, Julia Affonso e Tácio Lorran, do Estadão, e trata das suspeitas envolvendo o ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil). Ele é suspeito de utilizar verba do orçamento secreto em benefício próprio, mentir ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), contratar funcionário fantasma e se valer de recursos públicos (voo da FAB e diárias oficiais) para participar de um leilão de cavalos em São Paulo.
As reportagens levaram a uma crise entre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o União Brasil, e cogitou-se a saída de Juscelino. O presidente, contudo, decidiu manter o ministro no cargo (veja aqui o resumo do caso).
Trazemos também o trabalho dos jornalistas Rubens Valente, Matheus Santino, Alice Maciel, Caio de Freitas Paes, Laura Scofield, Bianca Muniz e Thiago Domenici, da Agência Pública. A equipe se debruçou sobre as atas de 233 reuniões para mostrar como atuou secretamente o governo Bolsonaro durante a pandemia da Covid-19.
Na dica da semana, mostramos como acessar o que foi apresentado e discutido no Nicar, a conferência anual de jornalismo de dados organizada pela associação Investigative Reporters & Editors, dos Estados Unidos.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
A ferramenta está disponível para todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Vale lembrar que as informações disponibilizadas pelo CruzaGrafos são públicas, mas o trabalho de curadoria, seleção, limpeza, cruzamento, estudo de relações de poder, diferentes tipos de download (manual, pedidos de LAI, webscraping, OSINT), descrição e pesquisa de exemplos é feito pela equipe da Abraji e do Brasil.IO. Dar crédito às organizações é importante para a manutenção desse trabalho e para mostrar a outros colegas que a ferramenta é útil.
Se você usar a ferramenta como referência para sua reportagem, não se esqueça de citar!
Confira as informações mais recentes do projeto aqui.
Boa leitura!
Olhos sobre o ministro
A primeira reportagem da série que revelou suspeitas sobre o ministro das Comunicações conta como Juscelino Filho, quando deputado na última legislatura, usou dinheiro do orçamento secreto para pavimentar um trecho de estrada que passa em frente a sua fazenda no Maranhão.
A investigação, que durou cerca de dois meses, teve início a partir de um estranhamento: Juscelino era um deputado do baixo clero sem nenhuma aparente ligação com a área da pasta que estava assumindo.
Para entender melhor sua indicação e de que forma ele poderia atuar no ministério, os repórteres foram investigar seu desempenho na Câmara.
Na base de documentos que o Congresso enviou ao STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o orçamento secreto (você pode conferir todos eles aqui), a equipe identificou que Juscelino não havia respondido à solicitação da corte para que informasse que destinação tinha dado à parte que lhe cabia dos recursos.
Descobriram, porém, que havia uma emenda patrocinada por ele que destinava R$ 7,5 milhões a uma obra de pavimentação em Vitorino Freire (MA), cidade onde sua irmã é prefeita.
Desenrolando esse fio, foram elucidando as suspeitas de desmandos: a maior fatia do valor da obra (R$ 5 milhões) seria usada para pavimentar trecho que corta a propriedade de Juscelino e dá acesso a uma pista de pouso privada. Além disso, a empresa responsável pela obra estava em nome de suposto laranja e é investigada pela Polícia Federal por pagamento de propina.
A investigação reuniu uma grande quantidade de fontes. De acordo com o repórter Daniel Weterman, a equipe se debruçou sobre o CruzaGrafos (abaixo a consulta sobre o ministro), Portal da Transparência, Siga Brasil, Divulgacand, cartórios, Receita Federal, Anac, diários oficiais, Plataforma Mais Brasil, redes sociais, documentos públicos e privados e depoimentos, entre outros.
#ParaTodosVerem: Print do CruzaGrafos mostra as relações societárias do ministro Juscelino Filho
O cruzamento de bases de dados originou outras reportagens, que revelaram, por exemplo, que a prefeitura comandada pela irmã de Juscelino tem contratos milionários com empresas de amigos, ex-assessoras e uma cunhada do ministro. A verba que subsidia os contratos foi destinada pelo então deputado, via emendas.
Uma dessas empresas, porém, está em nome de um beneficiário do Auxílio Emergencial, o que levantou a suspeita de que ele fosse um laranja. É possível fazer essa consulta pelo CruzaGrafos.
Ao cruzar informações da Receita e da Justiça Eleitoral, os repórteres identificaram que o endereço e o telefone fornecidos pela empresa são os mesmos que constam do registro de candidatura de um amigo de Juscelino, que foi recebido pelo ministro em seu gabinete.
Outro passo que deu fôlego à investigação foi mapear os terrenos e locais que foram surgindo ao longo da apuração. Neste fio do Twitter, o repórter Vinícius Valfré conta como usou o QGIS para mapear a extensão da obra e cruzar as informações com a localização das fazendas da família de Juscelino. As coordenadas do aeródromo particular citado no texto, por exemplo, podem ser encontradas no Aisweb, serviço da Aeronáutica.
#ParaTodosVerem: Print de um tuíte de Vinícius Valfré com o mapa da fazenda de Juscelino Filho e o trajeto da estrada a ser pavimentada
As redes sociais também foram aliadas importantes. Weterman conta, por exemplo, que foi possível confirmar pelo Instagram a informação de que Juscelino tinha participado de um leilão de cavalos no dia em que supostamente estaria em visita oficial em São Paulo, já que a organização do evento publicou diversos stories com o ministro.
“A notícia muitas vezes vinha de uma informação que um repórter já havia identificado e sozinha não dizia nada, mas que se complementava na apuração do outro. Esse cruzamento de informações, do que cada um tinha no radar, foi o que organizou a investigação. Ali a gente ia tecendo o fio da reportagem”, diz Weterman.
As atas secretas da pandemia
Onze reportagens são o produto de um esforço de sete jornalistas da Agência Pública para decifrar mais de 800 páginas contendo o registro de 233 reuniões do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19, criado pela Casa Civil do governo Bolsonaro para organizar esforços na pandemia.
Na prática, o centro de coordenação dividiu o governo em dois e buscou tirar o protagonismo do Ministério da Saúde no combate à Covid. Essa é a avaliação do repórter Rubens Valente, que conversou com a Investigadora sobre os bastidores da série.
Uma dica de uma fonte, ainda durante os momentos mais duros da pandemia, deu início à peregrinação pelas atas das reuniões. O governo negou os pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação com a justificativa de que as reuniões tratavam de decisões que ainda estariam sendo tomadas e, portanto, deveriam ser mantidas em sigilo. Acontece que a legislação prevê que a divulgação seja feita depois que as medidas foram postas em prática.
“É óbvio que no combate à pandemia as decisões eram tomadas diariamente. Eu pedia que, uma vez tomada a decisão, fossem dados os documentos. Era um truque, uma falcatrua do governo para deixar as atas com sigilo eterno”, afirma Valente.
O processo pela liberação das atas chegou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), mas a abertura dos documentos veio no início deste ano, com a troca de governo. Com centenas de páginas em mãos, parte da redação da Agência Pública se dividiu para decifrar o conteúdo das reuniões e recriar o contexto em que as decisões foram tomadas.
Como o arquivo veio em formato PDF, o desafio era encontrar palavras-chaves que ajudassem os repórteres a navegar pelo texto. As 800 páginas foram divididas em blocos, cada qual com seu responsável.
Houve quem usasse ferramentas mais sofisticadas para “quebrar” os PDFs, houve quem simplesmente fizesse a busca textual (o bom e velho ctrl+F).
“Na reportagem ‘Campeões de ausências e omissões: o papel de cada ministério nas atas secretas’ utilizamos algumas bibliotecas de Python para extrair o texto do arquivo em PDF: a PyPDF2 (para ‘liberar o texto’ do PDF) e re (para uma limpeza inicial do conteúdo extraído). Esse conteúdo foi copiado e colado em uma planilha. Procuramos padrões em cada página, como o número da reunião, data e horário, memória (onde as ausências e informes eram registrados) e encaminhamentos dentro da planilha”, diz Thiago Domenici, diretor e editor da Pública.
Você pode conferir os arquivos com as atas, dados e códigos utilizados no GitHub da Agência Pública.
Mais difícil que lidar com as questões técnicas, contudo, foi recriar, mais de um ano depois, o contexto que levou às decisões tomadas pelo comitê e suas consequências.
“O mais complicado é entender a importância e contexto histórico de cada ato relatado. É tanta informação que a gente pensava: ‘mas o que aconteceu naquele dia?’ Fazer o recorte do dia é muito difícil, porque a informação é cada vez mais fragmentada”, afirma Valente.
Ele traz uma reflexão importante, que contraria o fluxo natural das redações ao priorizar a cobertura quente.
“Essa série é um ensinamento para nós, jornalistas. A pandemia foi coberta por todos os veículos do país, causou tanta comoção, morte e sofrimento, foi investigada por CPI que revirou o tema. Um assunto aparentemente esgotado, na verdade, continha muitos segredos. Por mais que a gente ache que o tema está desgastado, nunca se sabe de tudo. Sempre haverá coisas a serem ditas”, finaliza.
Dica da semana
A organização da edição de 2023 do Nicar, conferência de jornalismo de dados realizada de 2 a 5 de março em Nashville, nos EUA, disponibilizou slides e repositórios apresentados pelos palestrantes neste link.
Entre os conferencistas estão feras de veículos como Washington Post, The New York Times, BBC, NBC e Texas Tribune.
O coordenador de projetos da Abraji, Reinaldo Chaves, esteve na conferência. Ele recomenda os painéis com exemplos sobre cobertura de mudanças climáticas com o uso de dados, as tentativas de desvendar as caixas-pretas dos algoritmos de machine learning, investigações internacionais do rastro do dinheiro de grandes empresas e passos de ouro para fazer uma investigação jornalística.
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*Flávia Faria é jornalista especializada na cobertura guiada por dados. Foi repórter da Folha e editora do DeltaFolha, núcleo de jornalismo de dados do jornal. Foi finalista do Sigma Awards 2022
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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Saiba mais sobre o CruzaGrafos
Consultamos milhões de dados da Receita Federal do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e de autos de infração lavrados pelo Ibama.
Temos, por exemplo, candidaturas em eleições, informações sobre empresas e cruzamentos com o Portal da Transparência. Você pode ler mais sobre nossa última atualização do projeto aqui.
O CruzaGrafos, indicado como finalista do Sigma Awards 2021, conta com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories.
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