#4 | Laranjas
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos,
Nesta edição, a newsletter vai falar um pouco sobre os laranjas ou testas de ferro. Alguns casos recentes ilustram a possibilidade de buscar informações sobre supostos laranjas, para encontrar indícios e fortalecer (ou não) suspeitas em investigações jornalísticas. O projeto CruzaGrafos, parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e da Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative, pode contribuir nesse sentido.
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, e uma webstory. O CruzaGrafos conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados.
O projeto é aberto a todas e todos associadas e associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji pode ver os passos neste link e aqui, como apoiar o Brasil.IO.
A próxima edição volta no dia 24 de fevereiro devido ao feriado de Carnaval. Para ler edições passadas da Investigadora clique aqui.
Boa leitura!
Várias formas, até em eleições
O uso de laranjas é, em geral, ligado aos crimes de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio e ocorre quando uma pessoa empresta seu nome para transações financeiras, comerciais, imobiliárias ou de outra espécie de natureza criminosa, para ocultar a identidade do verdadeiro beneficiado. O laranja pode ser remunerado por esse serviço, mas muitas vezes são usados dados de identidade sem permissão, normalmente de pessoas humildes, ou informações de indivíduos mortos.
A expressão “laranja” nasceu na polícia, mas não tem uma explicação clara e única, como apontam este texto e este outro. Foi popularizada pelo jornalismo porque explica de forma fácil a intenção de ocultar um crime.
Os casos mais recentes remetem a um novo tipo de uso: candidatos laranjas em eleições, como o esquema montado em Minas Gerais que direcionou verbas públicas de campanha para empresas ligadas ao ex-ministro e atual deputado federal Marcelo Álvaro Antônio (PSL), revelado por Ranier Bragon e Camila Mattoso na Folha.
Quatro candidatas em 2018 ficaram entre os 20 candidatos do PSL no país que mais receberam dinheiro público. No entanto, tiveram pouco mais de 2.000 votos, indicando serem candidaturas de fachada.
“A dica inicial veio de uma fonte. Depois partimos para o cruzamento de dados e a checagem do que ela havia passado. Foi aí que descobrimos outras situações semelhantes. Tudo isso aconteceu antes do trabalho de campo, que foi ir atrás das candidatas, dos políticos, partidos e empresários”, lembra Bragon.
Há um breve resumo dessa apuração aqui. Para além das pessoas ouvidas (informantes, candidatas, assessores, empresários, vizinhos), os jornalistas usaram o Divulgacand, a Receita Federal, checagens de CPFs e CNPJs, o PJE (Processo Judicial Eletrônico) do TSE e o site de divulgação dos resultados eleitorais da Folha, entre outros (dados partidários, redes sociais). “Reunimos os dados em uma planilha Excel para fazer os cruzamentos e colher as informações de que precisávamos”, completa o repórter.
“O objetivo do uso de laranjas foi forjar o cumprimento da lei, que exige um mínimo de 30% de candidatas, com repasse de recurso proporcional (dinheiro dos fundos eleitoral e partidário), além de mascarar o desvio dessa verba pública para candidatos homens ou outros fins”, afirma ele.
Indícios de candidaturas laranja também apareceram nas eleições de 2020. O Poder360 mostrou ao menos 96 candidatos suspeitos - receberam dinheiro de fundo eleitoral, tiveram gastos de campanha e, no final, obtiveram número reduzido de votos. Raquel Lopes, Caio Spechoto e Tiago Mali levantaram os dados de financiamento de campanha e cruzaram com os votos obtidos.
Foram usadas informações do repositório de dados eleitorais do TSE, a base de prestação de contas e de votação nominal. “Baixamos a prestação de contas de todas as campanhas e cruzamos com os dados de votação por candidato. Verificamos inicialmente que o candidato eleito com o menor ‘custo-benefício’ havia gasto R$ 131 por voto conquistado. A partir dessa constatação, fizemos um recorte por candidaturas que gastaram muito mais do que isso para obter um número ínfimo de votos”, explica Tiago Mali.
Dois critérios de corte foram usados: a candidatura ter tido gasto igual ou superior a R$ 1.000 por voto, e a candidatura ter recebido recursos do fundo eleitoral. Esse cruzamento foi feito com a linguagem de programação R, e foram identificadas candidaturas que usaram recursos públicos e que obtiveram zero voto ou menos de 10 votos. Uma busca pelos candidatos revelou situações em que, mesmo recebendo recursos públicos, os postulantes não fizeram campanha, ao menos uma que pudesse ser identificada.
“Conferimos nome a nome para saber se o dinheiro era do fundo eleitoral ou de doações. Com os dados selecionados, começamos a pesquisar mais sobre os candidatos de duas maneiras: redes sociais e por meio de pessoas da própria cidade e de partidos políticos. Tentamos entender se as pessoas da mesma cidade tinham ligação entre si. A apuração levou cerca de uma semana e surgiu a partir de um banco de dados acessível a todos. Conseguimos chegar a nomes com forte indício de serem laranjas, como o de uma menina de 18 anos que recebeu R$ 11.064,26, mas ninguém na cidade entrevistado pela reportagem sabia que ela era candidata”, recorda Raquel Lopes.
O texto chama atenção para outro indício desses supostos candidatos laranjas - o uso de fornecedores em comum por vários candidatos. Como um escritório de advocacia em Macéio. Na Receita e no Google Street View vê-se que ele tem capital social de R$ 5.000 e é um local sem imagens. Os fornecedores de campanha podem ser vistos no Divulgacand.
“Os fornecedores comuns podem indicar uma maneira de os recursos serem aproveitados para pagar despesas de outra natureza que não tenham relação com a campanha ou com o candidato”, diz Mali.
Empresas e donos de imóveis para supostamente esconder negócios
Um caso de suposta empresa de fachada na pandemia ainda é investigado no Recife. A Brasmed Veterinária é uma microempresa de Paulínia (SP) que no ano passado conseguiu contratos de R$ 11,5 milhões para vender respiradores para a prefeitura, como mostrou o Diário de Pernambuco.
A investigação partiu da Polícia Federal, do Ministério Público Federal (MPF) e da Controladoria Geral da União (CGU) e hoje está no TRF-5 (processo 0807288-86.2020.4.05.0000). O caso chamou atenção por se tratar de uma empresa criada recentemente (14/10/2019), ter capital social baixo (R$ 50.000), e ser de um ramo de atividade sem relação com medicina (47.89-0-04 - Comércio varejista de animais vivos e de artigos e alimentos para animais de estimação).
No CruzaGrafos, é possível ver que é uma empresa sem ligações societárias, além de ter uma única proprietária. O contrato da empresa com a prefeitura de Recife pode ser encontrado neste site. Pode-se buscar no campo "Razão Social/Nome" com o nome empresarial/razão social da companhia.
Também há maneiras mais sofisticadas de criar laranjas, principalmente para esconder propriedades imobiliárias ou dinheiro. A holding patrimonial, por exemplo, é uma empresa criada para administrar imóveis de um grupo empresarial ou familiar. É permitida por lei, mas também pode ser usada para esconder patrimônio. Já as offshores permitem a criação de empresas no exterior, em geral em paraísos fiscais, e com nível alto de sigilo e intermediários, o que torna mais difícil identificar sócios diretos e indiretos.
Dica da semana
Uma API (Application Programming Interface) pode ter diversos usos no mundo da tecnologia e nos negócios. Na área da transparência e de dados abertos permite automatizar a busca e captura de uma grande quantidade de informações de interesse público, em um formato adequado para leitura por máquinas. A prefeitura paulistana fez isso recentemente com o Diário Oficial do município, incluindo uma parte que permite ver as licitações diárias da cidade. Com isso é possível gerar pesquisas e arquivos, com informações como "modalidadeDescricao" (tipo da licitação), "cpfcnpj" do fornecedor e "valorcontrato". Veja aqui um script em Python no Github da Abraji com um exemplo de acesso à API e um guia para se cadastrar nela.
Se você conhece outras APIs de interesse público pelo Brasil escreva para cruzagrafos@abraji.org.br para fazermos mais textos aqui a respeito.
Valeu!
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