#43 | Investigando a gravidez precoce e seguindo os financiadores de desinformação
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá!
Eu sou Lucas Maia* e hoje falaremos sobre uma reportagem da Gênero e Número, que investigou casos de estupro de vulneravéis e gravidez precoce no Brasil e identificou que o estado de Roraima não só tem o maior número de casos de gravidez em meninas com menos de 14 anos, mas é o único lugar do país onde os casos aumentaram nos últimos anos.
Também mostramos os bastidores de uma reportagem do Aos Fatos, que seguiu o dinheiro da verba de gabinete de parlamentares e descobriu que recursos públicos estavam sendo utilizados para financiar sites conhecidos por produzir desinformação.
Na dica do dia, você vai conhecer uma newsletter repleta de dicas práticas de ferramentas e métodos para jornalistas (em inglês), a JournalistsToolbox.ai, mantida pelo professor de jornalismo digital na Universidade de Illinois em Chicago Mike Reilley.
E não perca a programação do 18º Congresso da Abraji e do Domingo de Dados. Será entre os dias 29.jun.2023 e 02.jul.2023 na ESPM, em São Paulo. Os ingressos para a versão presencial estão esgotados. Para quem não quer perder um dos maiores eventos jornalísticos da América Latina, ainda dá tempo de se inscrever para as sessões on-line, que correspondem a 50% de toda a programação.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
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Boa leitura!
Investigando a gravidez precoce
É com a narrativa poderosa de uma menina de 14 anos que vivenciou um parto vaginal em absoluto silêncio, seguindo os ensinamentos de sua mãe, que a treinou para evitar possíveis discriminações que as jornalistas Schirlei Alves e Marcella Semente iniciam a reportagem “Roraima lidera ranking de taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos”, da Gênero e Número.
“O objetivo inicial da pauta era verificar se meninas vítimas de estupro de vulnerável estavam tendo acesso ao serviço de aborto legal”, contam as jornalistas. Toda gravidez de uma criança de até 14 anos é fruto de violência: ter conjunção carnal com menores de 14 anos é estupro, de acordo com o Código Penal.
Schirlei e Marcella explicam que o primeiro caminho foi tentar cruzar o número de bebês nascidos de meninas menores de 14 anos com o número de estupros registrados nesta faixa etária, para isso elas buscaram informações nas bases de dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) e o Sistemas de Doenças e Agravos de Notificação (SINAN), onde constam dados sobre violência sexual e estupro. Os dados de ambos os sistemas podem ser encontrados no painel Tabnet, do Datasus.
O problema é que os registros de estupro da Saúde não indicam se a violência sexual resultou em gravidez. Além disso, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, outra fonte para registros de violência sexual, não desagrega por idade e UF, ou seja, elas tinham o total de ocorrências por UF e idade, mas não ambos.
“Então, decidimos olhar para os nascimentos vindos de meninas e adolescentes entre 10 e 14 anos e calcular a taxa de fecundidade nessa faixa etária para verificar quantas crianças e adolescentes estão dando à luz e qual é a realidade em cada estado. Ao fazer essa análise, descobrimos que cinco estados da região Norte estavam no topo do ranking”, conta Schirlei, que utilizou dados dos anos de 2017 a 2021, último período disponível.
Análise de dados
A análise dos dados foi feita pela Marcella Semente, que explicou não ter precisado de nenhuma ferramenta especial de análise de dados. Utilizando somente a tabulação do próprio Tabnet e comparado os resultados com a projeção populacional do IBGE.
“Roraima se destacou em vários pontos: além de liderar o ranking no período analisado, foi o único estado que não apresentou queda na taxa de fecundidade ao longo do tempo. Ao olharmos para o recorte de raça, verificamos ainda que 51% das meninas que foram mães nessa idade eram indígenas, enquanto a população indígena representava 11% da população total do estado. Todas essas questões nos fizeram procurar entender o que estava acontecendo em Roraima”, contam as jornalistas.
#ParaTodosVerem: gráfico de barras mostra a variação percentual da taxa de fecundidade entre meninas com menos de 14 anos nos estados. Enquanto todos os outros estados tiveram redução de até 30% nessa taxa, em Roraima houve um aumento de 10%.
Visualização
O uso de gráficos e infográficos costuma ser parte importante de reportagens que utilizam dados. No caso desta matéria, os gráficos garantiram uma visualização impactante e objetiva da situação existente em Roraima.
A designer de informação Victória Sacagami foi a responsável pelos mapas e gráficos que estão na matéria. Ela explica que na Gênero e Número a primeira etapa de toda criação de visualizações de dados se inicia no Flourish, onde é possível ter uma dimensão visual dos dados, entender padrões e possíveis destaques.
Ela explica o processo de criação do gráfico de colunas mostrando a taxa de fecundidade em cada estado. “Visualmente, entendemos que a divisão entre positivo e negativo poderia ajudar o leitor a identificar de forma rápida essa discrepância do dado. Depois dessa análise visual, fizemos os ajustes, testes mais elaborados e finalização no Adobe Illustrator”.
Victória lembrou também da importância de relacionar as cores dos gráficos de forma que o leitor entenda a relação entre eles e ressaltou a necessidade de usar um texto de apoio que contribua com a construção da narrativa.
Profundidade
Schirlei Alves explica que um dos maiores desafios da reportagem foi buscar fontes no estado de Roraima. “Acionamos várias redes de contatos que incluíram pessoas da área acadêmica, da saúde, ativistas e jornalistas que cobrem o tema. Mesmo com todos os contatos, levamos algum tempo até descobrir as fontes locais”, afirma.
Além disso, Schirlei conta que esse tipo de apuração envolve diversos aspectos culturais que exigem bastante sensibilidade, mas a jornalista acredita que este é o tipo de apuração que não se encerra em uma única reportagem e conta que pretende seguir aprofundando o tema.
Seguindo os financiadores de desinformação
O site Aos Fatos é uma das grandes referências em checagem de fatos no Brasil, no entanto, o trabalho do veículo não se resume ao fact-checking. Além das checagens, eles também produzem reportagens que investigam redes sociais e desinformação. É o caso da matéria "Deputado repassou dinheiro público a site com desinformação que tem milhões de acessos”, escrita por Ethel Rudnitzki e João Barbosa.
A reportagem mostra que, desde junho de 2022, ao menos 17 publicações do site Terra Brasil Notícias deram destaque positivo ao deputado federal João Maia, que também é presidente estadual do PL no Rio Grande do Norte, onde fica a sede do site. O parlamentar direcionou recursos públicos da sua verba de gabinete para o site que o elogiou e que foi identificado pelo Aos Fatos como um dos propagadores de desinformação mais ativos no Whatsapp durante as eleições de 2022.
A jornalista Ethel Rudnitzki conta que a ideia da pauta surgiu a partir da análise de dados da Câmara dos Deputados que mostram os gastos dos gabinetes com divulgação de atividade parlamentar.
#ParaTodosVerem: página do Portal da Transparência da Câmara dos Deputados mostrando tabela dos gastos do deputado João Maia com divulgação da atividade parlamentar em novembro de 2022. O destaque mostra que R$10 mil foram direcionados ao Terra Brasil Notícias Ltda.
“Fizemos download dos gastos no site da Câmara e cruzamos os CNPJs com dados da Receita Federal para termos informações dos sócios e das áreas de atuação das empresas prestadoras de serviço. Assim, o nome da empresa Terra Brasil Notícias nos chamou atenção em meio aos gastos de parlamentares, uma vez que já havíamos desmentido publicações do site anteriormente”, diz a jornalista.
João Barbosa, cientista de dados que fez o cruzamento entre as bases de dados, contou que utilizou a linguagem de programação Python para realizar a análise. No entanto, existem diversas maneiras de replicar o trabalho sem o uso de programação. É possível utilizar o painel de transparência dos gastos parlamentares e fazer filtros diretamente na plataforma web da Câmara dos Deputados ou até mesmo fazer o download de tabelas que, em muitos casos, podem ser abertas em softwares de planilha eletrônica. E, pelo CruzaGrafos, consultar os CNPJs.
Monitorando desinformação
Ethel explica que a identificação do site como fonte de desinformação é possível graças ao Radar Aos Fatos, uma ferramenta desenvolvida pelo veículo que tem a função de monitorar diferentes redes sociais e identificar publicações com combinações de palavras-chave e termos frequentemente associados à desinformação. “Esse monitoramento nos ajuda a identificar publicações desinformativas antes mesmo da viralização, colaborando assim com a checagem de fatos, além de produção de reportagens investigativas”, conta.
#ParaTodosVerem: screenshot da página do Radar Aos Fatos mostra um painel com gráficos e dados sobre publicações de baixa qualidade identificadas na última semana pela ferramenta.
Verificação de fatos e reportagens baseadas em evidências
A jornalista Ethel Rudnitzki explica que o uso de informações baseadas em dados e documentos é fundamental para a maior parte das checagens e reportagens do Aos Fatos. “Para desmentir um boato, por exemplo, vamos atrás de informações oficiais, uma vez que grande parte das publicações desinformativas são, na verdade, distorções de dados reais”, afirma.
Além disso, a jornalista conta que o veículo tem trabalhado na produção de reportagens que investigam os disseminadores de desinformação, incluindo políticos, sites especializados em espalhar boatos e também os anúncios desinformativos que circulam nas redes sociais. Essas matérias usam como base os dados sobre anúncios políticos disponibilizados pelas próprias plataformas, como o Google Ads e Facebook.
Dica do dia: caixinha de ferramentas para jornalistas
Não é preciso ser fluente em inglês para aproveitar as dicas de produtividade da newsletter JournalistsToolbox.ai. Com textos curtos e indo direto ao ponto, a cada publicação Mike Reilley mostra ferramentas digitais úteis para jornalistas de todas as áreas.
#ParaTodosVerem: imagem ilustrativa de um gráfico de barras gerado com o auxílio do Chat GPT
O autor descreve a utilidade de cada uma das ferramentas que indica, algumas vezes até mesmo fazendo tutoriais em vídeo para mostrar como usar as aplicações, que vão desde utilitários para raspar informações de arquivos em PDF até orientações sobre como utilizar o Chat GPT para construir gráficos.
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*Lucas Maia é jornalista e programador com experiência em Python, data storytelling e dataviz. Também é diretor de tecnologia na Agência Tatu, um veículo focado em jornalismo de dados localizado no estado de Alagoas. Acredita na atuação jornalística como forma de fortalecer a democracia e no poder de tornar dados públicos mais acessíveis a todos.
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