#50 Desaparecimentos forçados e a leniência das plataformas com a indústria dos vapes
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo oferecida pelo projeto CruzaGrafos, da Abraji
Olá!
Eu sou Lucas Maia* e hoje vamos mostrar os bastidores e desafios por trás da premiada reportagem Desaparecidos Forçados. No documentário para TV, Giselle Barbieri, jornalista do Núcleo de Projetos Especiais da TV Record, mergulha em uma investigação sensível e impactante sobre casos de pessoas que desapareceram após abordagens policiais nos estados do Pará, Amazonas e Santa Catarina.
Nesta edição, também conversamos com o repórter do Núcleo Jornalismo, Pedro Nakamura, que contou à Investigadora todas as técnicas utilizadas na apuração de uma reportagem que mostrou como a indústria de cigarros eletrônicos consegue burlar a legislação antifumo do Brasil e promover os vapes - de venda proibida - em diversos canais e perfis do TikTok, Instagram e YouTube com a leniência das plataformas.
Novidades
O CruzaGrafos acaba de ganhar uma importante atualização: agora, é possível acessar dados do Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB), da ANAC, para identificar empresas proprietárias de aeronaves no país. Essa integração amplia as possibilidades de investigação no setor aéreo, tornando as análises ainda mais completas e precisas.
Entenda melhor ao fim da newsletter!
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa! Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo oferecida pelo projeto CruzaGrafos, ferramenta que ajuda a investigar políticos e empresas, desenvolvida em parceria pela Abraji e o Brasil.IO.
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Boa leitura!
Desaparecimentos forçados
Cotado para o Oscar e sucesso de audiência em todo o Brasil, o filme Ainda Estou Aqui conta a história do desaparecimento forçado de Rubens Paiva durante a ditadura militar e os impactos causados à família do militante político nos anos 1970.
Veiculada meses antes do lançamento do filme que trouxe o assunto de volta ao debate público, a reportagem de Giselle Barbieri, da TV Record, mostra que os desaparecimentos forçados não deixaram de existir com o fim da ditadura e que, em todo o Brasil, jovens, majoritariamente negros, seguem desaparecendo após abordagens policiais.
A reportagem reconstruiu casos, apurou relatos, e ouviu histórias dolorosas de familiares e amigos de desaparecidos, indicando que a arbitrariedade e a impunidade seguem sendo marcas da estrutura policial brasileira.
Conversamos com Giselle para entender as estratégias e os cuidados necessários para produzir, no local dos fatos, uma reportagem tão delicada e corajosa, revelando os desafios de dar voz a histórias de dor, resistência e busca por justiça.

Crime sem castigo (nem tipificação)
O Brasil é signatário de tratados internacionais que prevêem a tipificação do crime de desaparecimento forçado, mas apesar de existir um projeto de lei tramitando na Câmara desde 2013, não há previsão para que o PL seja votado.
Giselle explica que quando não há subsídios suficientes para provar que policiais se envolveram no desaparecimento de alguém, o caso acaba sendo tratado como um desaparecimento e, no Brasil, desaparecer não é crime.
“Essa é a grande questão. Porque a tipificação do desaparecimento forçado é tão importante? Se a pessoa simplesmente desaparecer não há crime e não é investigado como tal. Não é aberto sequer um inquérito policial”, explica.
Para poder reconstruir os casos, a reportagem utilizou diversas informações obtidas com exclusividade. Além de entrevistas com familiares, operadores da justiça e especialistas, a jornalista teve acesso a diversas fontes documentais, como imagens de viaturas, câmeras de vigilância e dados de GPS.
Veja abaixo um trecho da reportagem que explica a dificuldade de esclarecer e punir casos de desaparecimentos forçados no Brasil
Vazio estatístico
Muitas das reportagens que aparecem na Investigadora fazem uso de dados estatísticos para chegar a pautas ou para poder se aprofundar nas histórias contadas, mas no caso da reportagem de Barbieri não existem dados oficiais: como saber quantos desaparecimentos forçados existem no Brasil se o crime não tem tipificação?
“O Fórum Brasileiro de Segurança Pública é uma instituição muito respeitada que compila estatísticas da violência no Brasil. E foi através do Fórum que pudemos descobrir que existem 75 mil pessoas desaparecidas no Brasil. Muitas podem estar podem estar enquadradas no desaparecimento forçado, mas nunca vamos saber porque não existe a tipificação do crime no país”, lembra.
A jornalista defende que garantir a tipificação desse crime é importante para poder criar estatísticas que possam embasar a criação de políticas públicas e mecanismos para combater o desaparecimento forçado e a impunidade que vem junto com isso.
Apuração difícil
Em entrevista para a reportagem de Barbieri, Eduardo Baker, da Justiça Global, um dos principais problemas relacionados ao esclarecimento de casos de desaparecimento forçado é que muitas vezes a instituição responsável por investigar os casos é a mesma na qual o suposto criminoso trabalha.
“O mais importante é garantir que o órgão ao qual o agente do estado envolvido está vinculado não seja o mesmo responsável por investigar esse desaparecimento forçado. Parece muito óbvio e intuitivo para qualquer pessoa, mas infelizmente a prática, no Brasil, não é essa”, defende.
A reportagem mostra que, em muitos casos, são os próprios familiares que, com a certeza de que seus entes queridos foram assassinados, fazem o papel do Estado e buscam investigar os casos por conta própria para tentar garantir não apenas a punição dos responsáveis pelos crimes, mas também o direito de enterrar seus mortos.
Veja um trecho da reportagem que mostra imagens e informações obtidas com exclusividade pela jornalista.
“Muitas das provas que consegui foram obtidas pelas próprias famílias. Em outros casos, nós conseguimos acesso através do Ministério Público ou da Polícia Civil, com o inquérito já concluído. Como eu acompanhei as investigações desde o início, tive acesso a documentos, arquivos, câmeras das viaturas e principalmente os vídeos que mostram a abordagem”, explicou.

Segurança na cobertura de crimes violentos
Barbieri explica que para conseguir fontes e cobrir - com segurança - casos que envolvem crimes violentos, como estes, é preciso se cercar de apoio institucional e de fontes seguras, buscando conversar com jornalistas locais e fazendo contato com instituições de defesa dos direitos humanos.
“No meu caso foi muito importante ouvir o Ministério Público, acompanhar o trabalho da Polícia Civil e principalmente de organizações que sabem lidar com esse tipo de crime. Então eu tive muita assistência da Anistia Internacional e da Justiça Global para poder compreender melhor essa situação”, conclui.
Vapes: proibidos no Brasil, liberados pelas Big Techs
A reportagem “Empresa tece rede de influência digital para empurrar vapes ilegais a jovens”, revelou que a empresa paraguaia Agatres promoveu sua marca de cigarros eletrônicos Nikbar no Brasil por meio de uma rede de influenciadores, celebridades e páginas de festas no Instagram, TikTok e YouTube. Apesar de proibidos no país desde 2009 e sujeitos a novas restrições pela Anvisa em 2024, os produtos entram ilegalmente via contrabando.
Artistas como Kevinho, Kawe e Zé Felipe, além de influenciadores e até um piloto da Nascar Brasil, divulgaram os vapes. A Nikbar patrocinou 12 festas, com sorteios e distribuição de produtos, além de cinco videoclipes de trap e dois podcasts, com maior atividade entre 2021 e 2022.

Plataformas como Meta e TikTok permitiram a promoção dos cigarros eletrônicos ao adotarem regras mais flexíveis do que as normas da Anvisa e a legislação antifumo brasileira, facilitando o alcance dos brasileiros a esses produtos.
A reportagem publicada pelo Núcleo Jornalismo foi produzida por Pedro Nakamura e Rodolfo Almeida. Para entender os caminhos da apuração, entrevistamos Pedro Nakamura, que detalhou os bastidores da investigação.
Como surgiu a pauta
Pedro conta que, na época, estava tentando entender como os cigarros eletrônicos contrabandeados chegavam ao Brasil. Ele menciona que tinha alguns indícios baseados em números de apreensões da Receita Federal e dados de consumo, que apontavam para um maior consumo na região mais próxima ao Paraguai.
Assim como acontece com o cigarro contrabandeado comum, a hipótese era que esses produtos deveriam vir do Paraguai, onde os cigarros eletrônicos são legalizados.
“Fazendo uma pesquisa avançada no Google com os nomes das marcas encontrei uma distribuidora chamada Agatres, que se apresentava como parceira oficial de várias dessas marcas. Ao navegar pelo site da distribuidora, percebi que ele incluía um link para uma pasta digital com imagens e documentos de marketing. Era uma página aberta, um Google Drive, onde estavam disponíveis todos os materiais comerciais dessa distribuidora e dos cigarros eletrônicos que ela revendia”, conta.
Além disso, os materiais encontrados mostravam que o público brasileiro era o principal alvo das campanhas publicitárias. Pedro explica que o conteúdo deixava isso explícito, incluindo listas de influenciadores, sugestões de hashtags e instruções detalhadas sobre como revendedores e afiliados deveriam criar perfis no Instagram para comercializar os produtos. Também havia informações sobre parcerias com artistas e outros conteúdos que serviram como base para Pedro buscar materiais semelhantes em outros lugares da internet.
Árvore de perfis de publicidade ilegal
O jornalista chegou a uma árvore com dezenas de perfis publicitários, influenciadores, artistas, podcasts, videoclipes e festas patrocinadas pela marca.
Além de usar a busca reversa de imagens, ele percebeu que perfis de revenda frequentemente repostavam materiais ou faziam marcações que indicavam novos caminhos para a investigação.

Pedro destaca que um dos elementos mais úteis para mapear onde esses perfis estavam eram justamente as marcações no Instagram. Ele explica que, ao acessar uma foto, era possível encontrar marcações que levavam a outros perfis, formando uma espécie de árvore de conexões. Esse processo muitas vezes revelava perfis desconhecidos, incluindo oficiais, facilitando o rastreamento da rede.
Outro fator que contribuiu, segundo Pedro, foi o fato de a Meta permitir conteúdos relacionados ao tabaco, mesmo sendo proibidos no Brasil. Isso fazia com que os perfis não fossem removidos, mas apenas indisponibilizados no território nacional.
Pedro explica que usando uma VPN foi possível acessar muitos perfis que não apareciam normalmente, mas que tinham atividades antigas e registros que se relacionavam com conteúdo produzido com foco no Brasil.
“Um perfil marcava outro, que levava a mais conexões. Quando algum perfil estava bloqueado, recorríamos à VPN para acessar o conteúdo, como Stories e outras informações relevantes. Com isso, foi possível mapear grande parte dos perfis envolvidos nessa rede de influência digital”, explica.
Quer produzir reportagens que envolvem redes sociais? Não se intimide!
Perguntamos ao Pedro Nakamura que orientações ele daria para quem quer investigar histórias que envolvem redes sociais, que costumam ser muito fechadas para quem deseja ir a fundo em ligações que ocorrem dentro das plataformas.
Segue a íntegra da resposta:
O conselho que eu daria é que a falta de conhecimento técnico ou o acesso limitado a ferramentas avançadas, como as APIs que a Meta disponibiliza para pesquisadores, não é algo que impede a realização de uma boa reportagem sobre redes de perfis ou canais. Nas redes sociais, é perfeitamente possível fazer um trabalho competente apenas sabendo analisar perfis, seguir pistas, criar conexões e ser organizado ao registrar essas informações, como em planilhas.
Minha dica principal seria essa: é possível investigar redes sociais e produzir reportagens relevantes sem ser um grande programador ou dominar requisições avançadas para APIs.
Com um pouco de sagacidade, atenção aos detalhes e organização — nem que seja apenas usando uma planilha — dá para fazer jornalismo de qualidade. Não se intimidem por não ter acesso às melhores ferramentas ou por falta de conhecimento técnico. É possível fazer jornalismo eficiente e bem apurado mesmo que seja na mão. Acredito muito nisso.
Novidades
O CruzaGrafos está ainda mais poderoso! Agora, ele integra a base de dados do Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB), fornecida pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Essa nova funcionalidade permite identificar empresas proprietárias de aeronaves registradas no Brasil.
Ao selecionar uma empresa com aeronaves cadastradas, um link aparece na barra de informações à direita. Basta clicar para abrir uma janela modal com a lista completa das aeronaves associadas.
Importante destacar que a base não inclui aeronaves pertencentes a pessoas físicas, já que os CPFs mascarados não podem ser cruzados com outras bases. Ainda assim, o sistema disponibiliza informações sobre 14.677 aeronaves cujos proprietários estão juridicamente identificados.
Com essa atualização, o CruzaGrafos amplia seu potencial para investigações mais detalhadas no setor aéreo, complementando outras bases de dados já disponíveis.
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Autor
*Lucas Maia é jornalista e programador com experiência em Python, data storytelling e dataviz. Também é diretor de tecnologia na Agência Tatu, um veículo focado em jornalismo de dados localizado no estado de Alagoas. Acredita na atuação jornalística como forma de fortalecer a democracia e no poder de tornar dados públicos mais acessíveis a todos.
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