#6 | Malha fina para compras públicas
Uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos e em investigações brasileiras
Olá! Bem-vindas e bem-vindos.
Meu nome é Eduardo Goulart de Andrade e esta é mais uma edição da Investigadora. Hoje, vamos falar sobre o projeto Tá de Pé – Compras Emergenciais, uma plataforma desenvolvida pela Transparência Brasil. Com a ferramenta, é possível acompanhar informações de licitações e contratos relacionados ao combate à pandemia. Além disso, a newsletter também traz exemplos de investigações sobre dados do aplicativo de mensagens Telegram.
Se esta é a sua primeira vez por aqui, sinta-se em casa. Esta é uma newsletter sobre jornalismo investigativo baseada em dados do projeto CruzaGrafos – parceria da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e do Brasil.IO, com o apoio da Google News Initiative.
As bases de dados do projeto não têm avaliação de mérito. Indícios de condutas ilícitas devem ser checados com fontes e mais informações. Além disso, o fato de qualquer pessoa ser investigada não significa que ela seja culpada. Todos os dados devem ser checados, incluindo os políticos e empresas citados. Também é preciso ficar atento a pessoas e empresas homônimas.
Você pode ler mais sobre o projeto aqui. Preparamos um guia escrito, um vídeo tutorial com legendas em português, inglês e espanhol, além de uma web stories. O CruzaGrafos conta ainda com um programa de treinamentos voltado para redações, grupos de freelancers, universidades e organizações do terceiro setor ligadas à educação e à transparência de dados.
O CruzaGrafos é aberto a todos os associados da Abraji. Para não associados, clique aqui. Quem quiser fazer parte da Abraji, pode ver os passos neste link. E aqui dá para apoiar o Brasil.IO.
Boa leitura!
Caiu na Malha Fina
Desde fevereiro do ano passado, a Transparência Brasil está coletando dados sobre compras públicas feitas pelo governo estadual do Rio Grande do Sul e pelos municípios gaúchos. As informações, obtidas no Tribunal de Contas do Estado, podem ser acessadas de um jeito intuitivo na plataforma do projeto Tá de Pé – Compras Emergenciais. O repositório é atualizado quinzenalmente.
Em breve, será possível consultar compras realizadas em outros estados. "Estamos finalizando a organização das bases de dados de Pernambuco e elas devem ser incluídas na ferramenta em meados de abril. Enquanto isso, seguimos tentando obter dados de outros estados por meio da LAI e de negociações diretas com os gestores de Tribunais de Contas", detalha a jornalista Marina Iemini Atoji, gerente de projetos da Transparência Brasil.
Segundo Atoji, os municípios registram as informações sobre compras com pouca (ou quase nenhuma) padronização. Isso traz uma série de dificuldades para fazer comparações e cruzamentos de dados. "Algumas bases apresentam o preço unitário dos produtos, enquanto outras não; as descrições de produtos variam de prefeitura para prefeitura, e até mesmo de secretaria para secretaria em uma mesma cidade. Percebemos também que os Tribunais de Contas não dão a devida atenção à qualidade desses dados, de forma que é difícil até para eles fornecê-los."
#PraCegoVer: Captura de tela do site Tá de Pé mostra um campo de pesquisa para buscar por municípios, produtos ou contratos. Também há um botão onde se lê "explore", com um texto ao lado escrito "o que a Malha Fina da Transparência Brasil encontrou".
Um dos recursos disponíveis na plataforma é a Malha Fina, uma seleção de licitações e contratos com características incomuns. Ou seja, a ferramenta destaca contratos que merecem um olhar mais atento. Essa triagem é feita a partir de um algoritmo desenvolvido pela equipe do Tá de Pé, que cruza os dados de licitações e contratos com informações de empresas na Receita Federal. Os responsáveis pela execução do projeto são a diretora de operações da Transparência Brasil, Juliana Sakai, o cientista de dados Jonas Coelho, também da TB, e o professor Nazareno Andrade, do Departamento de Sistemas e Computação da Universidade Federal de Campina Grande.
"Assim, ele verifica quais contratos apresentam pontos que a Transparência Brasil considera dignos de alerta: data de fundação da empresa muito próxima à data da licitação ou contratação; as atividades econômicas da empresa não têm relação com o produto que ela foi contratada para fornecer. Em breve, incluiremos a indicação de compras com preços fora da curva", explica Atoji.
Em novembro, o repórter Giovani Grizotti, da RBS TV, fez uma matéria com dados do Tá de Pé. A reportagem mostrou negociações irregulares em compras emergenciais.
Um exemplo do possível uso da Malha Fina: a ferramenta "acendeu o sinal amarelo" para uma contratação feita pela prefeitura de Mostarda. O contrato, no valor de R$ 178,8 mil, foi assinado com a empresa A. de Oliveira Cardoso Medicina em 31 de março, no mesmo dia em que a companhia foi criada.
Outro caso emblemático vem do município de Teutônia, que comprou EPIs de uma empresa de comércio de alimentos. A compra custou mais de R$ 30 mil. É possível pesquisar os sócios da AEA Comércio e Distribuição de Alimentos Ltda no CruzaGrafos.
#PraCegoVer: Imagem do CruzaGrafos indica que Diego Fydryszewski de Matos e Matheus Lorenzoni Althoff são sócios da AEA Comércio e Distribuição de Alimentos Ltda.
A ferramenta da Abraji e do Brasil.IO ainda mostra que os sócios da AEA Comércio e Distribuição de Alimentos Ltda também têm outras empresas – algumas delas, inclusive, da área da saúde.
#PraCegoVer: Print da interface do CruzaGrafos aponta que três pessoas estão conectadas por uma rede de oito empresas.
Para você que vai investigar compras ou contratos públicos, fique atento a esses outros indícios de irregularidades elencados pela gerente de projetos da Transparência Brasil:
Verifique se a empresa funciona de fato no endereço onde ela está registrada. Esse é um caminho para identificar possíveis "fantasmas";
Pesquise pelos nomes de sócios e administradores da empresa, com objetivo de encontrar possíveis conexões com o agente público responsável pela contratação;
Confira se a empresa ou a pessoa física está no Cadastro de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS), um indicativo de envolvimento em irregularidades.
Por fim, para quem quiser se aprofundar no tema, aqui vai um guia para monitorar compras da covid-19, além de um manual da Transparência Brasil para controle social de obras públicas.
Para onde vai o "tio do zap"
O Telegram ganhou fama no Brasil a partir da série de reportagens da Vaza Jato, encabeçada pelo The Intercept Brasil. Agora, o aplicativo de mensagens russo voltou a virar notícia depois que políticos e influenciadores de extrema direita aumentaram a produção de conteúdo (e desinformação) na plataforma.
Uma reportagem do Radar Aos Fatos revela que os principais canais bolsonaristas no Telegram dobraram o ritmo de suas publicações entre dezembro e janeiro deste ano. Segundo a matéria, o número de visualizações das mensagens aumentou quase cinco vezes no período.
Assim como no WhatsApp, no Telegram também é possível trocar mensagens de forma privada. Mas o app russo tem algumas particularidades que o fazem mais semelhante a uma rede social. O Telegram, por exemplo, permite a criação de grupos públicos com até 200 mil participantes. Já os canais ou listas de transmissão não têm limite. No WhatsApp, os grupos têm no máximo 256 pessoas.
"Acho que isso acaba tornando o aplicativo [Telegram] mais atraente para políticos e influenciadores e, do ponto de vista dos jornalistas, torna um pouco mais fácil saber o que está acontecendo. Isso, claro, não se aplica aos grupos privados, que também são permitidos no Telegram", avalia o jornalista Bruno Fávero, editor do Radar Aos Fatos, que assinou a matéria em parceria com Bernardo Barbosa, Débora Ely e João Barbosa.
Para fazer o levantamento, a equipe do Radar Aos Fatos usou uma base de dados enorme com canais de Telegram que foi publicada no Internet Archive em 25 de janeiro deste ano. "Então, filtramos essa base por algumas palavras-chave que costumam aparecer em grupos de política e olhamos um por um", detalha Fávero. Assim, eles encontraram 282 canais de blogueiros de direita no app. A partir daí, coletaram dados dos 20 grupos que somavam mais seguidores.
Fávero explica que o analista de dados João Barbosa foi o responsável por extrair as informações desses grupos. "Em resumo, ele escreveu um programa em Python que usa a API do Telegram para acessar essas informações. Com o identificador de cada canal, é possível coletar suas mensagens públicas e extrair informações como data do envio da mensagem, quantidade de visualizações, conteúdo multimídia como vídeos e imagens, entre outros."
#PraCegoVer: Print de um gráfico do Radar Aos Fatos apresenta a audiência de canais bolsonaristas no Telegram. O blogueiro Allan dos Santos, por exemplo, tinha em média 22.996 visualizações por post em dezembro do ano passado. No mês seguinte, passou para 41.156 views por mensagem. Ou seja, teve um aumento de cerca de 79%.
O Núcleo Jornalismo também analisou dados de 15 grupos e canais do Telegram. A reportagem aponta que o app russo é "o novo refúgio da extrema direita". A migração vem ocorrendo depois que políticos e influenciadores radicais passaram a sofrer sanções em outras redes sociais, como Twitter, Facebook e YouTube. A matéria é assinada por Sérgio Spagnuolo, Renata Hirota, Felippe Mercurio, Lucas Gelape, Rodolfo Almeida e Alexandre Orrico
O crescimento do Telegram não é apenas um fenômeno brasileiro. Ainda de acordo com a reportagem do Núcleo, o aplicativo atingiu mais de 500 milhões de usuários mensais ativos no mundo em janeiro, tornando-se o app móvel mais baixado no período.
O presidente Jair Bolsonaro foi um dos que aderiram à ferramenta. Ele lançou seu canal em 12 de janeiro. Cerca de um mês e meio depois, já tem quase 445 mil inscritos. Entre os líderes mundiais, o brasileiro só fica atrás do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump.
#PraCegoVer: Gráfico feito pelo Núcleo mostra que os líderes Donald Trump, Jair Bolsonaro e o turco Recep Tayyip Erdoğan eram os políticos com o maior número de seguidores no Telegram em 14 de fevereiro.
Bruno Fávero acredita que os jornalistas devem acompanhar com mais atenção o que está acontecendo no aplicativo russo. "O uso do Telegram ainda é menor do que de outras redes, mas parece estar crescendo, e tem atraído cada vez mais atores políticos relevantes", analisa o jornalista. "Acho improvável que seja um fenômeno passageiro."
Dica da semana
Já que o assunto é Telegram, que tal começar a investigar o que está acontecendo na plataforma? Aqui vão algumas dicas.
O Telegram Analytics pode nos ajudar a ter alguns insights. Apesar de ser um site russo, você não precisa se assustar com o alfabeto cirílico. É só instalar uma extensão do Google Tradutor para ler o conteúdo em português. Entre outras funções, a ferramenta de análise informa quais são os canais citados por uma determinada conta do Telegram e também mostra os números de posts feitos a partir de mensagens encaminhadas.
Ao pesquisar pela palavra "conservadores" no campo de buscas da plataforma, encontrei a conta @PatriotasConservadores com cerca de 5,7 mil seguidores. Segundo a análise do Telegram Analytics, o canal faz em média 38 postagens por dia. Ontem, 2 de março, o perfil publicou o trecho de um vídeo às 10h59 da manhã. Nele, uma infectologista espalha uma série de desinformações relacionadas à covid-19. A gravação foi feita em entrevista que ela concedeu em 26 de fevereiro a uma rádio de Natal, no Rio Grande do Norte.
Uma hora depois da publicação no Telegram, foi a vez do site Pleno.News "noticiar" a mesma entrevista da médica negacionista. Ela, inclusive, acusou periódicos científicos, como The Lancet, de serem "comprados". Dados da extensão do CrowdTangle mostram que o texto do Pleno.News já tinha quase 5 mil interações no Facebook por volta das 15h30 desta terça-feira.
#PraCegoVer: Print da extensão do CrowdTangle detalha o número de interações que a "notícia" do Pleno.News teve no Facebook.
Já este tutorial, em inglês, explica como mostrar graficamente as conexões entre diferentes canais públicos do Telegram. O autor do artigo apresenta o passo a passo para criar uma visualização de dados usando a ferramenta on-line Gephi, que é gratuita.
#PraCegoVer: Captura de tela que exibe um gráfico feito em Gephi pelo autor do artigo.
Como Bruno Fávero disse acima, a API do Telegram possibilita a coleta e o armazenamento de mensagens públicas do aplicativo. De qualquer forma, mesmo quem não programa pode trabalhar com a análise desses dados. "O app permite exportar o histórico de um canal ou grupo — com essa abordagem, no entanto, é mais difícil analisar um número grande de grupos", pondera o editor do Radar Aos Fatos.
Fávero também dá outra dica muito útil: é possível utilizar operadores de busca avançada para encontrar canais no Telegram. "Os grupos públicos do Telegram são indexados pelo Google, então dá pra achar muita coisa por lá (por exemplo, procurando por 'site:t.me [termo de interesse]'). A mesma estratégia de buscar domínios t.me também funciona para encontrar grupos de Telegram em outras redes sociais". A Escola de Dados tem um tutorial bem legal sobre operadores de busca avançada.
Há também uma série de custom search engines (CSE) para pesquisar o Telegram. Grosso modo, o CSE é um serviço disponibilizado pelo Google que permite que desenvolvedores criem sistemas de busca personalizados. Esta ferramenta aqui, por exemplo, faz pesquisas por contatos, mensagens e até stickers do Telegram.
Por hoje, é só. Até semana que vem!
Ficou com alguma dúvida? Quer saber sobre os bastidores de uma determinada reportagem ou aprender mais sobre alguma ferramenta? Vem com a gente: cruzagrafos@abraji.org.br.
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